Imagem: reprodução/TV Globo
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O Tribunal de Contas da União deu um prazo de 48 horas para o governo se manifestar sobre problemas na concessão do auxílio emergencial. O prazo começa a valer assim que os ministérios da Economia e da Cidadania, a Receita Federal e a Controladoria-geral da União receberem a notificação.

O TCU quer explicações sobre dificuldades de acesso às bases de informações da Receita, para definir quem tem direito ao benefício. E é justamente sobre a concessão desse benefício que a reportagem acima fala.

Nossos repórteres descobriram que o auxílio está sendo liberado para quem não deveria receber, como foragidos da justiça. Entre eles, estão alguns dos mais perigosos e procurados criminosos do Brasil.

Roubos milionários, tráfico internacional de drogas e até a construção de um túnel. O que casos tão diferentes têm em comum? A resposta. Os nomes de alguns dos envolvidos nesses crimes aparecem na lista dos brasileiros que conseguiram receber o auxílio emergencial do governo, mesmo sendo foragidos da Justiça. Ou seja: eles deveriam estar na cadeia, e não poderiam sequer conseguir a liberação das parcelas de R$ 600, dinheiro para enfrentar a crise do coronavírus.

O Fantástico descobriu a liberação do auxílio emergencial em nome de foragidos a partir de uma informação pública. No site do Ministério da Justiça, existe uma lista com os 22 criminosos mais procurados do Brasil. A maioria, ladrões e traficantes condenados que escaparam da Justiça e se esconderam, sem cumprir suas penas.

Com as informações que constam no site do Ministério da Justiça e em processos judiciais, fomos à pagina de consultas do auxílio emergencial. O produtor do Fantástico checou – um por um – se os nomes dos 22 bandidos apareciam no cadastro. O resultado: em nome de 11 deles, foi dada a entrada no pedido, e pra esses 11, o dinheiro consta como liberado.

Os “11” correspondem exatamente à metade dos principais foragidos do país que teriam sido beneficiados pelo programa destinado a trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados prejudicados pela pandemia.

Entre esses 11, estão alguns dos foragidos mais perigosos e ricos do Brasil. Como por exemplo: Willian Moscardini, o Baixinho, acusado de participar do roubo a uma empresa de transporte de valores no Paraguai em 2017. Os assaltantes explodiram a empresa e fugiram com o equivalente, hoje, a mais de R$ 60 milhões. Moscardini nunca foi preso por esse crime. No sistema da Caixa Econômica Federal consta que a entrada do pedido foi no dia 17 de abril e o beneficio foi aprovado seis dias depois. Na terça passada, a segunda parcela de R$ 600 em nome de Moscardini foi liberada.

Outro foragido que teve o auxílio concedido é Leomar de Oliveira Barbosa, o Léo Playboy. Condenado a 36 anos de prisão, Leomar era o braço direito de Fernandinho Beira Mar. É procurado pela polícia desde 2018.

Também saíram as duas parcelas de R$ 600 do auxílio para o nome deste outro criminoso: Álvaro Daniel Roberto. Apelido: Caipira. Apontado como um dos comparsas do megatraficante colombiano Juan Carlos Ramires Abadia, ele chegou a ser preso em 2013, mas fugiu e é procurado desde então. A quadrilha do Caipira tinha pelo menos R$ 70 milhões, somando dinheiro vivo, carros de luxo e imóveis.

Imagine então R$ 110 milhões. Era o que valiam os 780 quilos de ouro roubados no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, no ano passado. Um dos foragidos mais procurados do Brasil é acusado justamente de participar do planejamento do roubo do ouro. Para o nome dele, foram liberadas as duas parcelas do auxílio emergencial.

A Justiça procura Joselito de Souza desde 2018, quando foi acusado de assaltar uma lotérica. Ou seja, na época do roubo do ouro, ele já era um foragido da Justiça. E assim, mesmo tendo dois mandados de prisão em aberto – pela lotérica e pelo ouro -, o nome de Joselito foi aprovado no auxílio emergencial. O pedido em nome dele deu entrada no dia 20 de abril.

Além desses casos mostrados até agora, existem muitos outros. O Fantástico teve acesso a um levantamento exclusivo que revela: mais de 27 mil foragidos, em todo o Brasil, tiveram o auxílio emergencial aprovado. Só pra primeira parcela liberada para os nomes que aparecem nessa lista, o governo federal gastou mais de R$ 16 milhões.

Esse levantamento é da CGU, a Controladoria-Geral da União. Em São Paulo, por exemplo, o benefício foi liberado para os nomes de 6.879 foragidos. No Rio de Janeiro, para 825. Só uma investigação poderá dizer quantos desses 27 mil foragidos ficaram com o dinheiro ou tiveram seus dados usados indevidamente por outras pessoas.

Em Roraima, a lista da CGU já chegou e as investigações começaram. “Nós temos 88 pessoas sendo procuradas pela Justiça. Iniciamos o trabalho essa semana e já conseguimos prender 12 pessoas. Todas elas falaram que fizeram o cadastro, com o objetivo de receber o valor”, explica o delegado-geral de Roraima, Herbert de Amorim Cardoso.

Nesse levantamento a que o Fantástico teve acesso, também aparece outras fraudes: golpistas conseguiram o benefício usando os dados de pessoas que já morreram. E, mesmo presos, criminosos também embolsaram o auxílio, se cadastrando no programa com os celulares que circulam dentro das cadeias.

E tem mais gente que não deveria, mas está recebendo. Quem explica pra gente é o repórter Leonardo Monteiro. Em Portugal vivem pelo menos 150 mil brasileiros; nenhum deles tem direito ao auxílio emergencial. É uma das regras: o benefício só pode ser concedido para brasileiros, refugiados e estrangeiros que moram no Brasil.

Mas… “Eu achava meio estranho muita gente estar recebendo. E eu falei: isso não pode estar acontecendo”. Ela é brasileira e mora há 13 anos em Portugal; ganha a vida fazendo bolos e doces. Num dos grupos que participa, num aplicativo de mensagens – que tem brasileiras, na sua maioria – ela avisou que não era certo receber o auxilio: “Se alguma de vocês fizeram, toma atenção. Porque eu vou denunciar isso”.

Não adiantou. Mesmo morando em Portugal, algumas conhecidas falaram que conseguiram o benefício e elas nem precisavam do dinheiro. Uma escreveu: “Já da pra fazer um churras”. Uma outra tentou justificar, culpando os impostos pagos na época que morava no Brasil: “Tanto desconto lá e nunca fui beneficiada. Eu fiz e deixei na poupança das crianças”.

“É um estado de emergência, onde o país tem que ajudar os mais necessitados, e a gente está lesando o país em relação a isso. Má fé”, critica a brasileira.

Boa fé seria pedir o auxilio no país onde vivem de fato, e esperar a aprovação ou não. Portugueses e brasileiros que moram no país podem conseguir um benefício das autoridades locais, semelhante ao nosso auxilio emergencial, para enfrentar a crise provocada pela pandemia. O valor chega, no máximo, a 1100 euros, cerca de 7 mil reais, e pode ser solicitado mensalmente por até 6 meses.

“Eu estou usando o beneficio do governo português. Eu não tenho necessidade de usar o beneficio do governo brasileiro”.

Mesmo assim, a mulher resolveu fazer um teste pra ver se burlar o sistema era tão fácil como suas amigas disseram. Será que também conseguiria receber o auxílio do Brasil, mesmo sem ter direito? Ela conta que colocou o telefone e o endereço de parentes que vivem no Brasil. Pronto. Foi o bastante, logo o benefício foi aprovado.

No grupo, a brasileira escreveu: “Vou denunciar o meu caso. Eu quero um Brasil melhor. Devo contribuir”. E foi o que ela fez. Inclusive, já pediu o cancelamento do beneficio e devolveu o dinheiro. Existe uma página do Ministério da Cidadania só pra isso: “Não estava agindo de má fé. Eu pensei que não ia ser aprovada, mas como eu fui, a primeira coisa que eu devo fazer é denunciar. A minha missão realmente está cumprida. Não vou melhorar o mundo, mas eu vou fazer a minha parte”.

O Fantástico foi atrás de respostas. A Controladoria- geral da União informou que 22.942 pessoas que vivem fora do Brasil receberam o auxílio, mesmo sem ter direito, e disse também que mais de 233 mil brasileiros podem ter recebido o benefício ilegalmente e devem responder por estelionato e falsidade ideológica.

Qual seria a explicação pra tanta gente assim ter recebido o auxílio? A Caixa informou que apenas realiza os pagamentos e não participa nem interfere no processo de avaliação.

Especialistas ouvidos pelo Fantástico suspeitam que não tenha havido o cruzamento das informações com todas as bases de dados disponíveis, como a do Tribunal Superior Eleitoral e a do Conselho Nacional de Justiça.

Em nota, o Ministério da Cidadania informou que há “casos em reanálise que estão passando por filtros de checagem”, para evitar o pagamento indevido, que “os recursos para o auxílio já passam de 150 bilhões de reais”, e que “as parcerias com os órgãos de controle e fiscalização auxiliam na transparência da iniciativa”. O ministério afirma ainda que “quem prestar declarações falsas ou utilizar qualquer outro meio ilícito para conseguir o auxílio será obrigado a devolver os valores recebidos”.

Ao todo, 58 milhões de brasileiros tiveram o cadastro aprovado e o auxílio liberado.

Do outro lado dessa história, está quem – comprovadamente – tem o direito ao benefício, e mesmo assim, teve o cadastro recusado. A Karine, de Minas Gerais, tem cinco filhos. O auxílio foi negado porque consta no sistema que ela tem emprego formal, mas ela está desempregada desde setembro de 2019, como prova a rescisão do contrato de trabalho.

“Sem esse dinheiro, eu não consigo fazer nada. Até pra comprar as coisas pros meus filhos está difícil”, conta Karine Souza Oliveira.

Pra se ter uma ideia, só a Defensoria Pública da União já fez mais de 31 mil atendimentos de pessoas que alegam ter o direito, mas não receberam o auxílio. “Quem tem fome fica, de fato, indignado quando vê uma injustiça acontecendo. Especialmente quando é uma injustiça que lhe prejudica”, explica Atanasio Lucero Júnior, Defensor Nacional de Direitos Humanos.

Sobre o programa do auxílio emergencial, o defensor afirma: “É uma politica muito importante, muito necessária. Ela precisa de ajustes. Ela precisa ser aprofundada pra, de fato, chegar onde é mais necessária”.

“Tanta gente tá recebendo sem precisar. Eu estou precisando tanto e não consigo receber o meu benefício”, lamenta Karine.

G1

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