Ana Valéria ao lado da mãe, Vanessa, e do pai Walmir — Foto: Ana Valéria de Brito/arquivo Pessoal
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Ana Valéria de Brito não sabe precisar direito o exato momento em que tudo aconteceu. Era um momento de festa, de comemorações, em que ela e algumas amigas davam as boas-vindas ao ano que acabava de se iniciar. Ela estava na praia de Intermares, em Cabedelo, município da Grande João Pessoa, nas primeiras horas daquele 1º de janeiro de 2020. O telefone tocou de repente. Ela viu no visor do aparelho que era a sua mãe no outro lado da linha. Atendeu. De forma despretensiosa. Sem saber ainda que sua vida mudaria para sempre a partir dali. E que nas horas seguintes precisaria tomar decisões das mais difíceis.

A história dessa menina de 18 anos de idade tem tudo a ver com este 27 de setembro, quando se homenageia o Dia Nacional da Doação de Órgãos. A história dela é, ao mesmo tempo, a de tantos outros paraibanos e brasileiros. Que se conectam entre si. Numa rede que envolve sentimentos diversos – e aparentemente opostos – como tristeza, dor, luto, revolta, esperança, solidariedade, amor, alegria. E que ligam para sempre pessoas desconhecidas entre si: doadores, familiares dos doadores, pacientes na fila de espera, receptores de órgãos, que enfim ganham uma segunda chance de seguir vivendo com saúde.

Ana Valéria é a filha do pedreiro Walmir Pedro de Brito, de 43 anos. Ele acordou bem cedo naquele dia. Saiu de casa de bicicleta, no bairro pessoense de Portal do Sol, e pedalava pela ciclovia da avenida principal do bairro a caminho do trabalho. Acabou sendo atropelado por um carro em alta velocidade. A suspeita é a de que o motorista voltava de uma festa de Réveillon e estava bêbado.

Vanessa, mãe de Ana, ligava para dar a notícia que a menina não esperava receber naquela manhã de divertimentos. O pai estava em estado gravíssimo. Fora atropelado e levado para o hospital entre a vida e a morte. Ela rapidamente deixou o local onde estava e foi ao encontro do pai, ainda achando que tudo terminaria bem. Não tardaria, saberia que o caso era irreversível. “Nem tudo sai como a gente espera”, resume.

Ainda no dia 1º de janeiro já se sabia que muito provavelmente Walmir não acordaria mais. A literatura médica, contudo, obriga um prazo de 24 horas antes de atestar oficialmente a morte encefálica de uma pessoa, de forma que o diagnóstico só foi confirmado tecnicamente no dia 2. Naquele meio tempo, entre o luto pela morte e a revolta pelas suspeitas sobre a causa do acidente, a pergunta inevitável: doar ou não doar os órgãos? Pela lei brasileira, cabe exclusivamente à família a decisão.

“Fiquei sabendo dos detalhes no hospital. Fui para casa de uma tia e lá refleti muito”, relembra. Em seguida, ela narra como foi todo o processo: “Foi algo muito triste, completamente inesperado, um momento de luto, tristeza e angústia, mas não chegou a ser uma decisão difícil”.

Partiu dela a palavra final sobre a doação:

“No momento que eu enterrei meu pai, eu enterrei parte de mim. Mas o sentimento de salvar uma vida, de dar esperanças para alguém, de dar felicidade para uma outra família, é muito gratificante”, analisa Ana Valéria.

Ela pondera ainda que tudo fica mais fácil quando se muda as perspectivas. “Se fosse o meu pai numa fila de transplante, eu gostaria que ele recebesse um órgão”. Ana Valéria explica que as lições do próprio pai, em vida, foram fundamentais para ela saber o que era o certo a fazer: “Ele sempre me ensinou a praticar o bem, a não ser egoísta. Foi o que fiz. A doação é um ato muito nobre, porque o transplante pode ser a única possibilidade de recomeço para muitas pessoas”.

O fígado e dois rins de Walmir puderam ser doados. Dias depois, a filha foi avisada pelas autoridades de saúde da Paraíba do sucesso das operações. Órgãos do pai dela salvaram pessoas (anônimas para ela) em João Pessoa e em Recife. Ela gosta de pensar que, com a decisão, “a vida pôde ter sequência”. E ainda hoje guarda no coração os passeios de fim de tarde que fazia na praia, ao lado dele, no que classifica como “os momentos mais felizes da vida”.

Walmir passou a fazer parte de estatísticas de doações de órgãos, que estão em crescimento na Paraíba. Segundo a Central de Transplantes do Governo do Estado, os índices dos dois últimos anos foram animadores.

Em 2020, a média está em três órgãos doados por mês, contra uma média de 0,8 por mês em 2019. Na soma dos dois anos, 68 pessoas da Paraíba e 40 de outros estados já deixaram a fila de transplantes por intervenção direta dos esforços locais.

Mas, se o retorno dado pela Central de Transplantes sobre o sucesso da intervenção é algo que comove Ana Valéria, isso nem sempre foi assim. A fonoaudióloga Pollyana Saraiva, 40 anos, viu a mãe morrer em março de 2006. Naquela época, ela e sua família autorizaram a doação. As córneas foram doadas. O Estado prometeu dar um retorno, mas isso nunca aconteceu. “Ficamos tristes na época. Estávamos abalados e era reconfortante para a gente saber que a doação ajudou alguém. Mas, embora prometido, nunca recebemos uma resposta”, comentou ela.

Pollyana admite, inclusive, que essa questão a incomoda até hoje, ainda que isso não a impeça de também querer ser doadora de órgãos. “Eu entendo, no fim das contas, que naquela época o serviço ainda deveria estar no início”, explica.

Quem recebe doação de órgãos

Histórias como as de Ana Valéria e Pollyana têm sempre um outro lado da moeda. O lado de quem recebe o órgão. O lado que torna tudo muito emblemático e que interliga para sempre histórias que são ao mesmo tempo de dor e de alegria extremas. É o caso de João Paulo da Costa, hoje com 39 anos, que em 2018 passou por um transplante de rim e recuperou parte de sua vida de volta.

A narrativa sobre João Paulo, contudo, começa 21 anos atrás, quando ele tinha 18 e começou a ter frequentes dores de garganta. Foi ao médico, descobriu que estava com uma bactéria alojada no local, começou a se tratar. Era um problema brando, na maioria das vezes tratado com medicamentos simples, mas com ele a coisa se complicou.

A bactéria desceu e se alojou nos rins, agravando o quadro. Pelos dez anos seguintes, passou por um tratamento intenso. Remédios fortes, alimentação controlada, proibição de consumo de bebidas alcoólicas. Ainda assim, tinha vida normal. Trabalhava como comerciante e taxista. Conheceu a namorada, Katyuscia, que viria a ser sua esposa. “O maior presente que Deus me deu”, declara.

As coisas, contudo, estavam para mudar. Em 3 de agosto de 2009, ele recebeu o diagnóstico de insuficiência renal crônica. Os rins pararam de funcionar. Ele passou a ser obrigado a fazer hemodiálise três vezes por semana, em sessões que duravam entre três e quatro horas cada. É um tratamento invasivo, constante, que aprisiona.

O paciente não pode viajar, visto que não pode se distanciar por tempo demais da clínica em que realiza o tratamento. Além disso, as sessões debilitam o corpo, destroem a imunidade, tornam o passar do tempo um processo dolorido. “A gente fica muito debilitado, muito fraco. Foi um período muito duro”, explica.

Com o tempo, ele diz que cria-se uma rede de apoio e de amizades. A hemodiálise é feita numa sala com várias cadeiras, cada qual ocupada por um paciente diferente. E como as pessoas costumam realizar as sessões sempre nos mesmos dias e horários, todos acabam se conhecendo. Tornam-se amigos. Passam a se ajudar.

Isso é bom, claro. Mas tem o lado ruim. O lado da dor e do medo. Da convivência com a morte.

“Três amigos meus morreram no exato momento em que estavam conversando comigo. A gente estava conversando e, de repente, a pessoa parava. Sofria uma parada cardíaca”, relembra João Paulo.

Ao menos outras dez pessoas que se tornaram amigas dele morreram na mesma época. “Era algo corriqueiro. Você percebia. São sempre os mesmos horários, os mesmos locais, as mesmas pessoas. Quando uma não aparecia, a gente já sabia o que tinha acontecido”.

Foi um outro telefonema que mudou a vida de João Paulo. E, coincidência maior, um que ele recebeu no dia 3 de agosto de 2019, no dia exato em que se completava dez anos do seu diagnóstico de insuficiência renal crônica.

No dia anterior, ele diz que assistiu a uma reportagem sobre um acidente automobilístico registrado em Campina Grande. Uma mulher de 37 anos havia morrido. Mas, na hora, ele não pensou em nada ligado a ele. Passou o dia. À noite, foi dormir como se fosse uma noite qualquer. Não seria.

De madrugada, o celular dele tocou. Foi a esposa, Katyuscia, quem atendeu. Sobressaltou-se. Acordou-o completamente assustado. Havia um rim compatível à espera dele. Às quatro da tarde daquele mesmo dia, estaria entrando na sala de cirurgia, de onde saiu à meia-noite com um novo rim.

“Hoje eu vivo uma vida quase normal. Não posso pegar peso, não posso sofrer nenhuma pancada mais forte no local, mas hoje eu tenho uma liberdade que não conhecia há tempos. Sem a necessidade de hemodiálise. Não tem comparação. Estou livre daquela agulha, que é mais grossa do que a usada para doação de sangue”, descreve.

João Paulo está fora da fila. No entanto, ela segue longa. São atualmente 642 em espera por transplante na Paraíba, sendo 438 no aguardo de córnea, 197 de rim, seis de fígado e um de coração.

Mas João Paulo só pensa mesmo em viajar, tão logo acabe a pandemia. E, para quem nunca pôde sair de João Pessoa, pequenos feitos se transformam em desejos de toda uma vida. “Meu sonho é conhecer a praia de Pipa”, comenta João Paulo, sorridente, se dizendo pronto para ser feliz.

G1 PB

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