Foto: Carlos Madeiro/UOL
Compartilhe!

No maior pronto-socorro de Manaus, familiares sem notícias e população de rua buscam ajuda uns nos outros

É raro andar pelas ruas de Manaus e não encontrar alguém em situação de rua ou de extrema pobreza pedindo ajuda. Nos sinais das grandes avenidas, pessoas pedem ajuda de todo tipo: de comida a oportunidade de trabalho.

A situação é reflexo da dura situação pela qual passa hoje o estado de Manaus. Depois das queimadas de 2019, agora é a covid-19 que sufoca o maior estado brasileiro e o faz viver um cenário que mais parece uma guerra —só que contra um inimigo invisível.

Em apenas um mês, a média de hospitalizações saltou cinco vezes, e o precário sistema de saúde amazonense entrou em colapso sem oxigênio para seus pacientes.

“Calamidade”

Nas ruas, é comum também ver pessoas vasculhando sacos de lixo atrás de alimento ou algo que lhes seja útil.

Jonas de Araújo, 33, é catador e também dorme pelas ruas. No ano passado, conseguiu se isolar com amigos graças ao auxílio emergencial. Hoje, vive com o valor da venda das latas: cada quilo catado é comprado por R$ 3,50.

Está uma calamidade, e a gente não tem nada, não tem com o que trabalhar. Hoje em dia a gente leva umas 3 horas para catar um quilo [de latinhas], não tá dando nada. Ainda bem que tem o povo para ajudar nesses hospitais, se não, seria pior.”

“Só espero a morte”

Eu vim para aqui porque é mais seguro, o centro está vazio [pelo lockdown] e é muito perigoso lá. Além disso, aqui ganho comida, não passo fome, como ocorria alguns dias antes.”

Carlos Roberto Santos, 64, mora nas ruas há 15 anos e escapou da primeira onda alugando um quarto para se isolar com o dinheiro do auxílio emergencial. Hoje, está na porta do maior pronto-socorro de Manaus, o 28 de Agosto.

Tudo o que tem na vida está em uma sacola que leva sempre consigo.

Da vida agora só espero a morte. Já passei da idade mesmo não tendo nenhuma doença. Mas não quero pegar esse vírus: uso máscara, passo o álcool que me dão, mas sei que tenho risco. Fazer o quê?”

A gente está sempre com medo, viu o que está ocorrendo. A agonia maior é não ter informação.”

A gente não sabe nem se o paciente está vivo ou morto, não falam nada para a gente.?

Algo de muito diferente está ocorrendo em Manaus. Não sei informar se é uma cepa nova ou se é algo diferente. Mas quem está na linha de frente está vendo um aumento da gravidade dos casos.”

Noaldo Lucena, infectologista e pesquisador, que atua em clínica popular, atendimento domiciliar e hospitais públicos

Colapso sem precedentes

A alta explosiva no número de casos no Amazonas, e em especial em Manaus, não tem precedentes na história da covid-19 no país.

Na primeira onda, a capital do estado também viveu um colapso, é verdade; mas os números de casos e mortes diários já são bem maiores, assim como de enterros (que incluem mortes ainda a serem investigadas).

Sem atendimento nos hospitais, muitas pessoas estão morrendo em casa. Dos 158 enterros da quarta-feira passada, por exemplo, 19 foram de mortes em casa.

No dia do recorde (a sexta-feira, 15), foram 30 óbitos em domicílio das 213 e no total. Antes da pandemia 30 era o total médio de enterros por dia na capital amazonense.

“O sonho dela era se aposentar”

Foi no cemitério Parque de Manaus, no Tarumã, que foi sepultado o corpo de Maria de Fátima, 58, morta no dia em que faltou oxigênio.

“O sonho dela era se aposentar”, conta seu filho, o motorista de Uber Alexandre Pereira, 32, que acompanhou o enterro com o irmão e uma tia.

Três horas de espera e desistência

Na porta dos hospitais também não é difícil achar pessoas que buscam socorro diretamente, mesmo sabendo que as triagens foram fechadas por falta de vagas. No dia 16, o mecânico David dos Santos Fernandes, 42, procurou também a unidade por conta do agravamento da suspeita de covid-19.

Estou com falta de ar e dores nas costas e no peito porque estou tossindo demais.”

Depois de quase três horas no local, o homem, que tinha as mãos roxas, desistiu e voltou para casa.

De primeira a gente cavava as covas manualmente, mas, devido à demanda muito grande, não dava mais para a gente dar conta, não. Hoje, são as máquinas que fazem os buracos e cobrem de areia as covas. Não tem como ser manual, dar conta de tanto sepultamento.”

Só resta esperar

O aumento das mortes pode ser explicado pela falta de vagas em hospitais de Manaus, que superlotaram e enfrentam fila desde o dia 6 de janeiro. A pressão só cresce.

Na porta dos hospitais também não é difícil achar pessoas que buscam socorro diretamente, como a técnica de enfermagem Regina Oliveira, 44, que estava com a mãe.

Minha mãe ficou mais de um dia sentada em uma cadeira. Agora [na terça-feira, há três dias internada] ela está em uma maca. Alegam sempre que não têm leito para a internação e que temos de esperar.”

Morte por asfixia

Não há números exatos de quantas pessoas morreram por falta de oxigênio no Amazonas, mas contabilidades extra oficiais apontam para ao menos 50. Na porta da única empresa que vendia oxigênio no domingo, no Distrito Industrial de Manaus, uma fila gigantesca se formou para conseguir adquirir o produto. A espera chega a durar 12 horas.

Um dos proprietários da Carboxi, Marcelo Dutra, conta que a fábrica direcionou toda sua produção para o oxigênio medicinal, mas não está sendo suficiente.

Estamos com dificuldade de arrumar iso contêineres para comprar mais oxigênio e trazer para cá. Temos nossa frota própria de carretas que está atuando, mas continuamos procurando [para ampliar a oferta].”

A falha dos poderes

O governo federal foi alertado uma semana antes da falta de oxigênio, mas não agiu até a situação chegar a níveis impensáveis. Já o governo do Amazonas tinha sido alertado ainda em novembro da insuficiência.

No meio jurídico, o doutor em direito criminal pela Universidade de Paiva (Itália) e professor da Universidade Federal de Alagoas, Welton Roberto, afirma que uma punição dependerá de uma investigação que aponte as contribuições e omissões de gestores e funcionários para o quadro caótico no estado.

“Tem que se verificar a responsabilidade subjetiva, se eles pessoalmente foram informados — e aí não estamos falando da teoria do domínio do fato, é preciso saber se ele não comandaram ações, se comandaram e subordinados não seguiram. Se alguém nessa cadeia participou de alguma forma para a falta de oxigênio, pode ser, sim, penalizado”, conta.

Roberto explica ainda que será preciso individualizar as condutas para classificar, por exemplo, se seriam crimes de homicídio culposo ou dolo eventual — o que mudaria o tamanho a pena. “Para ser doloso é preciso provar que a pessoa teve a consciência, a vontade e a ação — de maneira positiva ou negativa — para que o evento criminoso acontecesse. E aí, no caso de um gestor, somente se ele foi alertado e não tomou providência, mesmo sabendo que ia morrer gente. Já se foi negligência ou imperícia, ele responde de maneira culposa [sem intenção de matar.”.

UOL

Deixe seu comentário