Imagem ilustrativa/reprodução/internet
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Alguns ainda classificam certos períodos históricos como “românticos” ou “era de ouro”, correspondendo sempre aquelas situações onde a excelência das produções artísticas e intelectuais geniais pareava com um modo “bon vivant” de se levar a vida. Caso um arqueólogo cioso cavucasse o terreno fértil das lembranças, provavelmente descobriria camadas sobre camadas de romantismo.

Cada época que se finda deixa um lastro de saudades e sedimentos do romantismo. Camada pós camada que se vão acumulando, deixando rastros apenas para exercício das memórias afetivas.

Os decanos dos últimos períodos áureos rondam por aí ainda feito dinossauros. Em vias de extinção. Nas artes plásticas, na música, no jornalismo, eles são o registro vivo de uma época, resquícios e  sedimentação de uma era.

O mundo em que construíram suas trajetórias profissionais, contaram “estórias” e fizeram história findou-se, tragado pelos impactos atrozes, das inovações estilísticas, dos novos formatos e dos maravilhosos e úteis recursos da tecnologia.

Também foram atropelados pelas ondas da própria evolução natural do mundo, das mentalidades e das compreensões, das relações sociais, das estruturas produtivas. Enfim, caducaram.

Possivelmente esse preâmbulo se aplica a vários ramos da vida profissional, mas aqui nos detemos fundamentalmente no “fazer jornalístico”. Os períodos, digamos, românticos, dessa prática social  se nos apresentam como eras, camadas de tempo e de comportamentos atribuídos a esse exercício de  observação, apreensão e contação de mundo que a muitos embriaga. Uma era, quando submerge nas brumas do tempo, deixa no ar um saudosismo inquietante e inspirador.

A título de exemplo, ainda meio menino, tive o prazer de conhecer, via  a obra da norte-americana Edna Ferber, Cimarrom (1930), o intrépido Yansey Cravat e sua esposa Sabra Cravat. Por meio da trajetória desbravadora e aventureira do personagem, como editor e homem da lei,  a autora retrata o idealismo, o sentido de retidão, os percalços e as dificuldades de se fazer jornalismo. O romantismo da prática está cimentada no relato do desbravamento épico e vigoroso do oeste americano.

Lembro-me, também à título de exemplo, do romance Bel’ami, do escritor francês Gui de Maupassant, em cuja trama um jovem camponês, George Duroy, em busca de realização profissional e financeira traveste-se de jornalista e circula entre o lixo e o luxo da sociedade parisiense, seduzindo damas da sociedade e destilando seus venenos no journal La vie Française.

Nos dois exemplos, de uma forma ou outra, o romantismo atribuído ao jornalismo é reiterado. Melhor, celebrado. As referências ao ambiente que envolve o jornalismo encantam, destacando, claro, o espírito de aventura, a livre circulação de ideias, o trânsito vip pelo centro e arrabaldes do poder, a perspicácia da investigação e a relativa projeção social. Afora, a influência sobre a opinião pública.

Todo esse caldo temperado, claro, pelo stress das rotinas de produção, pelos deadlines, pela competição intra corpore redacional, pelas armadilhas e trairagens, pelas as egolatrias e pelo o desglamour que envolve a maioria absoluta das pautas. Pelo ambiente pouco democrático para negociação com editores e, sobretudo, com os cidadãos Kane, os donos da bagaça toda.

Não vivi exatamente uma “era de ouro” em nenhum aspecto. Guardo memórias, sim, de um tempo de aprendizado, aquele que se situa entre o encanto, a fascinação e o desejo. Nasci em uma época onde o jornal impresso (ainda) e o rádio imperavam na comunicação. Já haviam, claro, vivido seus respectivos anos dourados, mas em uma cidade “bucólica e provinciana” como João Pessoa ainda eram o “must” e muitos jovens, como eu, queriam fazer parte daquela máquina de influência. Muitos tenderam para o rádio. Antigos como eu sempre fui queriam a letra impressa na página cuspida pelas rotativas.

As aulas de jornalismo, por sua vez, lá pelos primórdios do que viria a se chamar era da informação, refletiam bem o aspecto artesanal da produção jornalística. Não sabíamos o que viria a ser um programa básico de edição de textos, um e-mail, um arquivo digitalizado, nem sonhávamos com as tais redes sociais ou antevíamos a migração em massa dos hebdomadários para o ambiente virtual. Nossa produção diária, do brainstorm ao produto final, nascia e morria no papel; aquele mesmo que servia, logo no dia seguinte, para embrulhar o peixe da moqueca.

Nossa rotina de aprendizados incluía a régua de paicas, a lauda de 30 linhas e 70 toques, a mecânica máquina de escrever, o filme ou película fotográfica, a câmera de super-8, o LP, a fita cassete, o paquidérmico gravador. Os professores Carmélio Reinaldo, Otinaldo Lourenço, Arion Farias, Manoel Clemente. Assim sendo, cada aprendiz ia se familiarizando, por afinidade ou tendência, àquele material, maquinário ou instrumento que iria fazer parte da sua composição personalizada no mundo jornalístico.

Atualmente, a produção textual em si não transcendeu em muito seu caráter braçal, em sua íntima tabelinha criativa com os recursos da mente. Os meios de, digamos, “materializá-lo” é que passaram por revoluções. O papel, um meio de gravação ancestral, incluído como meio de comunicação imprescindível no mundo do jornalismo, perdeu seu espaço e importância. Foi superado. Assim, sendo foram-se máquinas de escrever, de compor as colunas que iriam dar sentido às páginas do jornal, processo de diagramação, engenhos de impressão. O parque tecnológico do velho jornal foi obrigado a se refazer. Enquanto isso algumas profissões desapareciam e outras passavam por processos de ressignificação.

Por agora, munido de um computador e tendo acesso às possibilidades do mundo digital, torna-se fácil a qualquer um posar de jornalista. Desapareceram a estrutura, a hierarquia, os papéis definidos, a racionalidade da produção, a vigilância ética e estética, a responsabilidade sobre o item publicado. As velhas aulas de jornalismo ficaram por lá, datadas, ultrapassadas, quadro puído nas paredes da memória. Acho que fui romântico demais.

Edson de França

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