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Ando sonhando com Grenouille, o serial killer do romance “O perfume” (Patrick S?skkind, 1986, Presença). É uma alusão reincidente que traz à tona não a trajetória do assassino de “moças virgens e puras”, mas, especialmente, os últimos momentos do personagem, sendo devorado literalmente pela turba ensandecida em via pública.

Grenouille, a personagem principal do romance gótico, atingiu o ponto máximo de sua abjeta existência.  Ao conseguir produzir a essência fundamental para ser adorado, o ser que nasceu e cresceu inodoro (sem cheiro corporal algum para chamar de seu, porém, ironicamente com um olfato privilegiado), abandonou uma condição de figura abjeta, passou a ser desejado desesperadamente em seus últimos momentos de vida.

Ao fim do romance/trailer (e isso é um spoiler intencional, galera!), um grupo de abandonados da sorte, maravilhados e devidamente atraídos pela figura de Grenouile, o devoram em praça pública. Devoraram-lhe as carnes como quem, doidamente, antecipasse o consumo canibal do churrasqueiro, antes que a carne principal estivesse pronta.

Desgraça e glória, enfim, para Grenouille, um assassino contumaz que buscava, na pele de suas jovens vítimas, barbaramente sacrificadas, um objetivo: o supra sumo dos perfumes, uma essência que superaria todas as outras existentes. A vileza de G casava-se com seu intento de, através da criação do raro perfume, tornar-se também um perfumista mítico. Um mito da perfumaria. Uma glória suprema para uma entidade sempre acossada e relegada às estrebarias da vida.

O caminho das figuras mitológicas se faz de diversas formas, sendo a primeira delas o traço da hereditariedade. Nasceu filho de Zeus fatalmente será mitológico, sendo deus, semi deus ou puramente bastardo. O destino está traçado.

No mundo humano, a viela dos mitos “bons” é pavimentada exclusivamente pelo cultivo de suas certezas, bandeiras e ideais, sejam de fôlego amplo ou curtíssimos feito a vida de um pernilongo. Nesse caso, torna-se “mito” pela dedicação, exclusiva, quase que as raias do transe, aos princípios universais do bem comum, da santidade, da solidariedade, dos valores humanitários ou, simplesmente, dos heroísmos pessoais que demonstram a superação dos limites do humano comum.

Claro que aqui não se aplica uma regra geral; anomalias são sempre possíveis e a safadagem,  a desonestidade, a trapaça e o embuste, assim como a mentira, a pilantragem e os maneirismos podem elevar um ente a condição de “mito”. Bem construído é bom que se diga. Não faltam  impostores, enganadores, vigaristas e finórios se candidatando ao posto. Prestigigitação social, criação e manipulação de narrativas são, a priori, o talento que os catapulta.

Por fim, cada vez mais presentes em nosso cotidiano, destacam-se os mitos de nossa era – misto de celebridades assépticas, out door, e ratazanas portas a dentro – construídos pelo poder da autoproclamação ou pela cegueira da unanimidade burra. Um cão miúdo qualquer, de baixa ou mediana patente, que se creia célebre e espalhe suas nefastas certezas, ao entender o quê do substantivo  “mito”, cola-o a pele, primeiramente, depois introduz na mente e vai enraizando-a até ser todo consumido por ela.

Está nu, decerto. É o ridículo da raça, o erro evolutivo e civilizatório. Crê-se superior capaz de toda força, forma de poder e capacidade infinita de emaná-lo. Um ou outro, seja “mito real” ou construído, será consumido pelo seu próprio lodaçal movediço. Transes não costumam durar para sempre.  Alpinismo social, exposição exagerada, convivência em ambiente tóxico, marcado por fidelidades vazias, traições iminentes, criminalidade e apologia da violência, medeiam seus passos. Tanto assim que, assumindo um poder qualquer, tomam providências imediatas para eliminar os séquitos mais próximos, os tais “arquivos vivos”.

Num segundo passo, o nível de psicopatia gera ataques contínuos síndrome de perseguição, para qual encontra soluções na eliminação de todo aquele que o desagrada, mesmo o mais indiferente dos mortais que, Deus sabe porque lhes inspira alguma ameaça.  Ademais, o estado esquizofrênico o insta a se manter acreditando em seu próprio mito.  Ao fim, fatalmente, se afogarão nos pântanos de seus próprios egos ou no banquete canibal de seus adoradores.

Penso que algumas personalidades da vida traçam passos decididos para o mesmo destino do personagem aludido acima, o Grenouille. Os aspirantes a ditadores se encaixam nesse perfil. A roupagem lhes cabe adequadamente. Os paqueradores do autoritarismo, da autocracia, dos regimes despóticos são um misto de psicopatas, sociopatas e exímios mitômanos. Todos, sem exceção, almejam a condição de mito que, em sua consciência arrevesada, quer dizer “aceitação inquestionável” de suas figuras e infalibilidade total. Têm dias contados, porém.

É que o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo/ e nos sonhos que fui sonhando/ as visões se clareando até que um dia acordei”. Os ditadores que ergueram pra si estátuas viram, do túmulo elas caírem. Outros experimentaram ainda em vida o dilapidamento do mito construído. Saddam, Kadafi (al-Gadhafi), Mussolini, Hitler podem, numa mesa branca, mostrarem seus olhos vazios de sabujos espancados, destronados, expostos aos dentes afiados de seus antigos súditos.

Bom que se diga que toda fidelidade aos sabujos tem prazo de validade. Como nada fazem para manter ou aumentar sua popularidade até mesmo entre seus dominados, após uma série de desenganos tende a cair. O desagrado é como coceira, basta um começo. Não há máscara que dure para sempre, sobretudo quando feita de papel de arroz, da qual olhos mais atentos extraem a face verdadeira que o pano e a pantomima escondem.

Os tiranos constituem um pesadelo. Terra arrasada para os ideais coletivos. Ameaças espúrias, espírito autoritário, recorrência aos discursos ultrapassados, hipocrisia dos covardes. Resta ao cidadão revisitar o romance O perfume e seu emblemático  protagonista. Sinceramente, sonho que o grand finale do pesadelo seja mais hard que o fim de Grenouille.

“Arrancaram-lhe as roupas, os cabelos, a pele do corpo, estraçalharam-no, enfiaram as suas unhas e os seus dentes em sua carne, caíram sobre ele como hienas”. O trabalho, porém, não estaria completo, afinal a carne humana é tenaz, sem o concurso de adagas, machados, machadinhas que “desciam zumbindo sobre os membros do corpo, quebravam com ruído os ossos”.

“Em pouco tempo o anjo estava esquartejado em trinta partes e cada integrante da corja catou um pedaço e retirou-se, arrastado por um lascivo desejo para devorá-lo. Meia hora depois, cada fibra de Jean Baptiste Grenouille havia desaparecido da face da terra”. Ocasos mais que previsíveis.

Por Edson de França

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