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Hipocrisia à brasileira – Velório de Pelé. Consta que poucos jogadores e ex-jogadores compareceram às cerimônias de despedida do rei. Talvez isso tenha a ver, como lembrou a  jornalista Helen Brown (Band News), o nosso secular pouco apreço pelos símbolos nacionais. Outro, diria eu, pela ressignificação, aos olhos do recorte contemporâneo,  do status que a morte ocupa. Andamos mais frios para as sentimentalidades que acompanham os desfalecimentos até dos entes mais próximos. Atravessamos tempos de enterros rápidos e de cremações de acesso restrito, diferente de outros tempos de velórios domiciliares, noites de vigília, latumias de carpideiras e féretros concorridos. Tudo bem. Entende-se. Sinal dos tempos.

Durante a “campanha” da Copa, dois jogadores (um ex e um atual) criticaram os brasileiros por não valorizarem os ídolos nacionais. Conste-se: nem eles compareceram ao velório do Rei. Ou seja, para além do respeito às “glórias nacionais”,  somos naturalmente hipócritas em relação ao “amor” e o “respeito” que a eles dedicamos. Na minha humilde opinião, na maioria das vezes, quando exposta de forma escandalosa e ufânica, como nos últimos dias,  não tem nada de genuína. E antes fake e oportunista.

Sou daqueles que não gostam de velórios. De preferência até ao meu quero chegar atrasado. Mas entendo o velório de um representante de uma categoria como a do futebol – talvez o maior expoente dentre eles – como um momento simbólico. Há um simbolismo inerente, em reafirmação ou recriação permanente, que precisa ser motivado para gerar referências.

A simples presença de alguns atores deste “circo” traria impressa uma mensagem: o empreendimento é humano, tem história, reconhece seus vultos, se irmana em todas as situações. Essa mensagem enraiza-se entre os povos amantes da prática, dá-lhe confiabilidade, justifica as audiências internacionais.

Em tempos de consolidação capitalista da indústria do futebol, da frieza dos ganhos e das transações bilionárias – o tal business que é sinônimo de números incontáveis -, porém, isso parece ser coisa do passado. Os “peões” bilionários da máquina não viram o evento assim. Humanos e normais demais, por isso indiferentes. Talvez e por isso mesmo tantos administrem tão mal as próprias vidas e carreiras.

As instituições gestoras do futebol, por seu turno, parecem não ver assim. Representantes das duas instituições estiveram por lá. Talvez por entenderem, para muito além da mentalidade dos “peões” do sistema, que simbologias são importantes para a reificação dessa empresa que, assim como a vida humana, pode atingir de uma hora para outra a exaustão máxima e a decadência irreversível. Experimentar apagões como todo sistema produtivo, que precisa contar com os níveis de aceitação social para aperfeiçoamento de seus produtos e a manutenção do consumo.

Para os empreendimentos de apelo popular como o esporte, a noção de símbolos e ícones é importante. As cerimônias, então, nem se fale. O ato dos atletas deixa só um sinal, são peões no grande jogo, humanos falíveis as ondas e modismos, prestes a serem consumidos pelos abismos da própria egolatria e lembrados apenas pelos mais próximos que, por deveres familiares, não podem faltar ao enterro ou a cremação.

É preciso entender que os milhões da indústria dos esportes não vieram assim do nada. São fruto de uma construção, ou seja, de muito empenho na estruturação do esporte e, sobretudo, numa história que possa ser contada e apreciada. Ela preexiste aos atuais astros que parecem não entender que o status quo foi conseguido, ou melhor, construído passo a passo. Vivem as regalias do ápice de uma indústria que se retroalimenta por meio das simbologias. Assim como a efemeridade da Copa, o título mundial ou regionais do mundo, do gol emplacado em bronze, dos pés marcados na calçada da fama.

A falibilidade progressiva ou o passamento dos ídolos maiores também há de ser acompanhada; as homenagens finais prestigiadas. Fazem parte da liturgia estratégica do empreendimento. Pelo valor da lenda e pelo prestígio do esporte na memória popular. Ao civil amante do esporte apenas, que jamais ostentou um escudo nem ganhou um real ou um título com o futebol, se compreende. A quem viveu e, inclusive, ainda vive depois de aposentado, dos frutos proporcionados por ele, esperando ainda ostentar o cartaz de ídolos e ser reconhecido por seus feitos…é um caso a se pensar.

Voyeurismo alimentado – Um casal transa (simula ou quase concretiza o ato, sei lá!) em rua de cidade do interior. Um voyeur, essa categoria epidêmica em nossos dias (abutres das cenas do ridículo alheio e das violências de toda ordem), saca um celular e filma a cena. Presumivelmente se excitou com ela. Entrementes.

Logo em seguida ao registro, ele experimenta mais um desejo: participar de algum modo do “espetáculo”, compor a cena. Deseja também ser voyeurizado. Reproduz-se, assim, o mecanismo  dessa sede vampiresca por momentos de êxtase. A captação aleatória dos instantâneos alimenta uma indústria do olhar e faz as honras de chamariz para os comentários e avaliações mais absurdos.

O próximo passo do providente abutre é compartilhar com seguidores em sua própria rede social. Ou mais, garantir acesso à opinião pública via audiência dos “portais profissionais” de imprensa. O que é feito imediata e mecanicamente. Aí surge outro drama e a imagem gera comoção social.

Creio que a ação de uma boa editoria não levaria aquelas cenas ao público. Simplesmente abortaria bem no início da propagação, assim como pessoas de bom senso não espalham pornografia, cenas de crimes e tragédias ou fake news explicitamente manipuladas. Sem estardalhaço, sem cair na tentação de sensacionalizar e espargir a “versão” do fetichista. Simples.

Mas a imprensa “nanica” – que um dia foi chamada de “marron”, dada a inconsistência de seus produtos e a militância “político-ideológica” ou coisa aparentada – atualmente em franca expansão nos portais eletrônicos, tá nem aí para esses critérios. Necessita de visualizações para garantir sua existência. Muito mais que justificar sua importância estratégica, é preciso garantir acessos, audiência, penetração popular. Em nossos dias, estrategicamente montada numa cruzada “sanitarista” insana, ideologicamente corrompida e, sobretudo, eivada de hipocrisia.

Porque não, então, revestir um fato desses com um invólucros discursivos que atraiam a ação condenatória da sociedade e lançá-la feito restos de banquete aos cães. As etiquetas do anticristão, antisocial, traição aos castos costumes familiares, antidemocrático e até movimento comuno socialista (a que o homem comum teme sem entender bem o que é) recheiam o texto e os comentários que se seguem, cujo teor jornalístico e substituído pela sugestão de viés ideológico conservador e, digamos, reacionário.

O libelo é reproduzido integralmente por muitos meios, afinal, nesse setor prevalece a lei do menor esforço, ou seja, colar e copiar é bem mais fácil do que produzir uma linha que seja. Também não se tem tempo. O mundo é uma profusão de informações e não dá tempo de pensar; é preciso manter a página atualizada de sucessos mundanos, mesmo aqueles a que nem um cronista menor daria atenção. Na verdade, só reforçando, o voyeur se equipara aos desinibidos, cada qual com sua vontade de expor-se e o prazer resultante.

Por Edson de França

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