Guardo comigo a melodia entoada por Agostinho dos Santos (1923/1973), o “sobrinho do Nonô” do ‘Samba da Benção’ de Vinícius de Moraes, o poetinha. “Na Alameda da poesia…”, canta ele no verso inicial. O primeiro verso da canção dá a partida para uma viagem que propõe-se inicialmente epifânica. Caímos na armadilha. Aquela voz preenche o ambiente desnudando nota a nota a interrogação proposta: “Por quem sonha Ana Maria?”. Uma melodia dolente conduz o ouvinte a paisagens quase oníricas e nostálgicas.
Ao final, nem o bardo criador, nem o cantor inspirado, nem o luar que vela o sonho da personagem hão de responder à provocação inicial. Ana continua a dormir. O sonho de Ana, seus mistérios ficam suspensos no ar da noite, dourada pela luz plácida do luar. Dei spoiler pois, sei, que poucos ousarão a buscar a audição, mas essa peça musical me encanta e sou tentado, vez ou outra, a reouví-la. Revisitá-la tornou-se mania para mim.
Busquei, por outro lado, e como de hábito, identificar o autor daquela musipoema que parecia tirada de um quadro antigo. Obra que sugere ter sido extraída de uma velha aquarela, de um estado de sonho de olhos abertos, apreendida pela pena romântica de um antigo sonetista. Encantou-me saber que ela era da lavra do senhor Jurandyr Czaczkes Chaves, falecido este ano, aos 84 anos. Pelos dados da wikipedia, Jurandyr Czaczkes Chaves (Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1938 – Salvador, 25 de março de 2023), compositor, músico e humorista brasileiro.
Conhecia o senhor Juca Chaves, nome por que era conhecido, o humorista e cantor, de aparições nas TVs, sobretudo nas do segundo time tipo SBT, Bandeirantes e Rede Tv. Não me lembro de tê-lo visto alguma vez na telinha da “Vênus Platinada”. Aquele tipo específico de artista, apesar do apelo popular de suas obras, parece não interessar ao paladar “refinado” desta última, que orquestrou o “gosto musical” de algumas gerações. Soam inteiramente ultrapassados.
Por isso, o próprio Juca, Moacir Franco e Luiz Vieira couberam mais na programação tipo B da emissora capitaneada por Silvio Santos, de onde os extraí. Este que, inclusive, aninhou em sua programação o gênero sertanejo, antes que virasse febre, modinha universitária e frequentadora do headphone de jovens e, inclusive, do cardápio modernoso da “vênus” referida acima.
Fechemos esse capítulo e voltemos ao artista. A mim ele sempre pareceu enorme, maior que o espaço que a mídia lhe reservava. Alguém que sempre parecia ter algo a dizer, um tipo Millôr Fernandes da música. Desses que o Brasil não quer ouvir, pois os antecipa sempre a ameaça deles tocarem em feridas ou pontos sensibilíssimos da hipocrisia genuinamente cultivada entre nós. Alguém estrategicamente antenado com a política e a vida nacional, sobretudo, explorando os pontos onde aquela (que compõe uma parte do Brasil oficial) toca (ou bate, melhor dizendo) no brasil real.
Se a estória da Ana Maria referida no início do texto soa romântica, lírica, outros temas de sua autoria o classificam como o barroco Gregório de Matos, um “boca do inferno” ou “de brasa”, fotografando e satirizando o ritos da sociedade. “Conhecido pelo sarcasmo quase ácido e sua veia francamente humorística, coisa insuspeitada, revelou-se lírico através da letra e da melodia daquela canção”, diz texto publicado na internet sobre a canção Ana Maria. (https://sampi.net.br/franca/noticias/1636157/nossas-letras/2017/07/por-quem-sonha-ana-maria).
Talvez ainda, ele parasse na cultura brasilis como um herdeiro direto do Barão do Itararé (Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, também conhecido por Apporelly (Rio Grande, 1895/Rio de Janeiro, 1971), pioneiro no humorismo político brasileiro e, de acordo com o jornalista Cláudio Figueiredo, autor da biografia Entre Sem Bater – A vida de Apparício Torelly, “Foi muito mais do que ‘frasista’. Foi um humorista revolucionário, anárquico, inovador”. Qualificativos estes que, a meu ver, se adequam à personalidade do JC.
Nas aparições, quase sempre anunciando um novo espetáculo pelo eixo rio-sampa, sempre me atraiu a composição da indumentária e adereços do menestrel. Modelito casual, pés descalços, uma tornozeleira que parecia querer atrair a mesma pergunta para a trabalhada réplica: “Uso-a, porque sou lésbico”, respondia as provocações.. A imagem se completava com o violão de arquitetura estranha. Um alaúde ancestral? Um instrumento de trovador? Uma craviola a la Tetê Espíndola? Que nada. O som ali era do violão brasileiro, casual e galhofeiro. As notas, uma moldura mínima para o verbo ganhar voos.
Sabia, por fim, de seu “isolamento” baiano. Uma forma de responder perifericamente aos apelos do mundo dos espetáculos, creio. De meter os pés desnudos na terra e se reconectar com as energias básicas do homem que habita este mundo. De eliminar o stress dos múltiplos assédios da vida. De usufruir e cultivar profundos e ternos amores por Iara, sua musa. De viver as filhas adotadas, de “tez de pele” contrária a sua, as quais queria ensinar mandarim. A “língua do futuro”, disse em entrevista.
Juca, mestre, foste humano, vivente, captaste a energia de teu tempo. Surfaste no que, pelos teus princípios, pareceu superior. Penso que esse é o grande legado que todo artista genuíno deveria prezar, não sendo apenas um habituée da mídia. As capas de revista absorvem a juventude, sugam-na, exaurem-nas, cospem-na. Rostos lindos, vozes, corpos limpos e sarados, roupas “apertadas” da moda se exaurem. Murcham.
Um menestrel não envelhece, nem morre. Chega aos fins como todo mortal que se preze, deixando alguns princípios. A sapiência os ensinou a alimentar-se apenas das “mangas” do tempo. Suas mensagens ganham longeva vida, aspiram a eternidade. “A imprensa brasileira é séria. Quando paga pública até a verdade”. Eis-me gratuito.
Não percebo artistas do tempo em que vivo sob influência da mesma vibe. Se suicidam antes. Morrem no palco e na vida pública tentando alcançar a altura das notas que, momentaneamente, lhes emprestaram notoriedade e fama. Por isso e outras, salve Juca Chaves. Por quem sonhas agora? Até uma hora dessas, mestre!
Por Edson de França