O São João se anuncia como espírito de época. Se avizinha e a gente anordestinada sente n’alma. A gente espera, espreita, anseia sua envolvente chegada. Perspectivamos momentos e recordamos folguedos vividos. Particularmente sinto sua chegada pelos sentidos físicos, sobretudo. São sabores para o paladar e uma certa energia, inefável e não quantificável, que parece envolver e preencher todo o ar. No meu caso, devo dizer, emanados do passado, de minha infância dos anos 70/80.
Não vivi as grandes noites inspiradoras dos clássicos musicais, que nos transportam para um ambiente rural, no entanto, sinto falta de fogueira e de fumaça. Sinto falta da peça materializada nos terreiros, aprecio seu simbolismo. Algo me toca como uma memória ancestral, anímica. Sinto falta do compadrio e da brincança de meninos e do calor ao seu redor. Os fogos, a corrida pelo temor ao fogo dos piás, as simpatias, os “compadres de fogueira”, o milho assado na palha, a batata doce assada em casca, a carne lambuzada de cinza para tira gosto. Fora os olhos lacrimejantes, o resto “nóis” tirava de letra, era só diversão.
Do que eu vivi, sinto falta. Sinto falta das canções, da espera do velho João Maia pelo mais novo lançamento de Trio Nordestino, 3 do Nordeste, Elino Julião, Messias Holanda e João Gonçalves. Por fora, resgatados do arquivo vivo e terno, ainda compareciam para animar o nosso terreiro, em estágio de voz aprisionada em LP’s, Marinês, Trio Mossoró, Luiz Gonzaga, Zito Borborema, Zé Gonzaga, Noca do Acordeon e todos os Calixtos.
A memória afetiva que me banha tem, definitivamente, cheiro de fumaça. Seja pela artesania de fazê-la e acendê-la, seja pela evocação suscitada pelas letras do repertório de época. Por esses dias, a fogueira era sagrada lá por casa e parecia ser por toda a rua, todo o bairro, toda a cidade. A João Pessoa que me cabia parecia toda periférica do mundo, das modas e das exigências contemporâneas. Nosso chão era de areia e a iluminação pública tinha fiação alta.
Meu pai era João. Fogueiras pro santo, então. Meu vizinho era Pedrão. Troncos e gravetos em honra ao santo lá se vão. Vi pouquíssimas armadas para saudar Santo Antônio, o casamenteiro.. Acho que ninguém andava tão afim de casar. Para Santa Ana, vi algumas. Sempre havia, no dia dedicado à santa julina, uns restos da fogueira de Pedro a queimar.
Meu São João é um experimento astral. Viajo do passado ao presente, reinvento-me em meu tempo, estruturo um nicho de rememorações e permanência ativa. Não me tirem o São João, pois me alimento, espiritualmente, dessa passagem breve, sazonal, de tempo. Minha psique se agita, é atentada por estímulos, pede que me movimente e, de alguma forma, jeito, maneira, participe. Que esteja presente,nem que seja em espírito d’alma cheirando a suor e fumaça.
A fogueira me chegou como tradição, religiosa até, mesmo eu não sendo exatamente um religioso praticante, gosto de signos, símbolos e de lembranças. Se Isabel acendeu uma para anunciar o nascimento do filho João, o ritual católico a incorporou como sinal do nascimento. Para nós nordestinos, época de fartura e abundância. A fogueira está na cerne dos rituais pagãos, a quem devo todos os meus respeitos e, confesso, uma porção de crença panteística. Claro que o símbolo da fogueira, lembra de momentos tristes da lesa fé de um povo e do dirigismo errôneo das religiões. Pulemos essa parte triste da história.
Curto cheiro de fumaça que indicie momentos de festa, anunciação, festejo pela safra bem sucedida. Sou desse espírito dos ciclos da terra, dos deuses e santos, da religiosidade e crença populares. A eles devo o fato de perceber-se ente pertencente a uma comunidade global sem tirar os pés do meu quintal. Se pudesse me afastar da civilização e acender uma fogueira, pode crer que faria, já que as cidades não mais as comportam.
*Derradeiras abaixo*
Sou um homem que acompanha o sentido racional dos dias que correm. Se há um tempo que é-me dado para viver, adapto-me às suas demandas. Sem reservas. Não me assumo mantenedor de “tradições” apenas para congelar estados de atraso. Se defendo a manutenção de um pingo de tradicionalidade na “trilha sonora” da época junina e uma reserva de mercado para os artistas da “terra” é como forma de não descaracterizar inteiramente o período.
Não tomo saudosismo e comportamentos “caretas” como sinônimo de amor desbragado às tradições. Para quem assim possa pensar, a fogueira e os fogos até passam como um símbolo de “conservação” das sagradas solenidades. A mim não. Minha memória afetiva me basta. Com algum custo, claro, mas me contenta.
Mas, como disse antes, sou um cidadão do meu tempo. Nele vivo, percebo as novas demandas, regras e normas de convívio e respeito extremo à coletividade. Se a configuração urbana já não absorve fogueiras como nos tempos em que nossos subúrbios se assemelhavam a sítios, tiremos elas de cena.
Assim como as quadrilhas, hoje mega espetaculares, as fogueiras hoje cenográficas cumprem seu papel. Com os recursos da programação gráfica planejando-as, imagino o espetáculo que elas podem gerar, sendo o centro da festa, simbolicamente, sem que ninguém precise se queimar ou aspirar, passivamente, a fumaça.
Se o conforto animal e até, em muitíssimos casos (pessoas especiais, acamadas e idosas, por exemplo), passa pela abolição de fogos ruidosos, criemos outro artifício para alegrar nossas festas.
As inovações definitivamente não “plastificam” o São João. Nem na música. Sob certos aspectos, sem os arroubos invasivos, sempre há a possibilidade de mesclagem de épocas, intercâmbios e releituras. Porém, ressalte-se, nossa alma pode ser permeável, mas nunca totalmente lesada. Pela reciclagem de hábitos, de sons, de memórias. Se o cheiro de fumaça já não mais fica na roupa, que permaneça o espírito da festa, da celebração, da fartura e do cultivo das melhores energias. Sigamos vendo “um mundo de alegria bem na raiz/ Alegria muita fé e esperança/ Na aliança pra fazer tudo melhor (e será)/ Felicidade o teu nome é união/ E povo unido é beleza mais maior
Por Edson de França






