O que é, afinal, a arte?
Essa pergunta, que parece simples, atravessa séculos sem resposta definitiva. A arte nasceu com o ser humano, quando ele ainda desenhava nas cavernas o que temia e desejava. Desde então, ela foi a forma mais profunda de dizer o indizível — de transformar emoção em forma, som ou cor. A arte é o espelho da alma humana, e, por isso, revela não apenas o que temos de belo, mas também o que temos de mais obscuro.
Os estudiosos costumam dividir a arte em categorias: a primeira arte é a arquitetura, que molda os espaços; a segunda, a escultura, que dá forma à matéria; a terceira, a pintura, que colore o mundo; a quarta, a música, que fala direto à alma; a quinta, a literatura, que expressa o pensamento por meio das palavras; a sexta, o teatro, a representação da vida em cena; e a sétima, o cinema, a fusão de todas as anteriores. Depois vieram a fotografia, as histórias em quadrinhos e as artes digitais, ampliando os horizontes da criação.
Mas, mais importante que saber quantas artes existem, é entender para que a arte existe.
A arte nasceu para expressar, para emocionar, para questionar — nunca apenas para vender, chocar ou entreter.
No entanto, vivemos tempos em que a fronteira entre arte e espetáculo se confunde perigosamente.
A arte contemporânea, em muitos casos, parece ter se tornado refém da provocação vazia. Não raro, artistas buscam visibilidade a qualquer custo. Um exemplo emblemático foi o de um artista que pintou quadros utilizando as próprias fezes. Ganhou manchetes, prêmios, discussões. Mas
o que realmente ele quis comunicar? O ato de escandalizar se tornou mais importante que o conteúdo da obra.
Não é errado provocar — toda arte verdadeira provoca. Picasso provocou. Van Gogh provocou. Duchamp provocou. A diferença é que eles tinham algo a dizer. Hoje, muitas vezes, o gesto é puro ruído, uma performance sem alma.
E essa perda de sentido não está restrita às galerias: ela se manifesta de forma ainda mais clara na música popular contemporânea, especialmente nos gêneros mais consumidos pelos jovens — o funk, o sertanejo moderno e o forró eletrônico.
Há algumas décadas, a música brasileira era reconhecida pela força de suas letras. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Zé Ramalho, Luiz Gonzaga e tantos outros transformavam palavras em poesia, e poesia em crítica. Falavam de amor, de injustiça, de política, de fé, de esperança. Ouvir uma música era também um exercício de pensar.
Hoje, o cenário é outro. As letras tornaram-se cada vez mais simples, repetitivas, centradas na lógica do consumo, da ostentação e, principalmente, na objetificação do corpo feminino.
Mulheres são frequentemente retratadas como produtos — corpos a serem exibidos, consumidos, avaliados. Em muitos funks, forrós eletrônicos e sertanejos modernos, o corpo feminino não é sujeito, mas objeto: é “o rebolado”, “a novinha”, “a gostosa”, “a que desce até o chão”. A mulher deixa de ser uma presença humana e passa a ser apenas um símbolo de prazer e poder masculino.
Isso não é arte: é mercadoria.
A batida prende o corpo, o refrão cola na mente, mas o conteúdo adormece o pensamento. A mulher é usada como ferramenta de marketing — e a própria música perde sua função libertadora, tornando-se instrumento de dominação cultural.
E é aqui que a reflexão precisa ir além da crítica estética: esse fenômeno está diretamente ligado a um problema social e educacional profundo.
Em uma sociedade em que grande parte das pessoas lê pouco, interpreta mal e reflete menos, a música deixa de ser espaço de poesia e vira produto de repetição. O público, sem preparo crítico, consome sem perceber o que consome.
Não se trata de elitizar o gosto musical — trata-se de compreender o impacto da falta de educação estética e intelectual na cultura.
A baixa escolaridade e a dificuldade de leitura e interpretação tornam o público mais vulnerável à superficialidade. Letras ricas em metáforas e críticas sociais exigem esforço mental — e o sistema em que vivemos não estimula o esforço. O resultado é um ciclo vicioso: músicas simples para mentes cansadas; mentes cansadas alimentadas por músicas simples.
O corpo feminino, por sua vez, torna-se o palco desse empobrecimento simbólico. Quando a arte não educa, o corpo é reduzido ao que tem de mais visível, e não ao que tem de mais humano. E, paradoxalmente, muitas jovens passam a reproduzir essa estética acreditando que nela reside sua liberdade — quando, na verdade, é uma forma sutil de aprisionamento.
A sensualidade é natural, faz parte da vida, da arte e da música. O problema está em quando ela é usada como único sentido possível da expressão feminina.
Em um tempo em que a imagem vale mais do que a palavra, a arte corre o risco de deixar de ser espelho da alma para se tornar reflexo de uma sociedade que já não quer pensar — apenas ver, clicar, dançar, seguir.
A arte perde sua profundidade quando o olhar perde sua capacidade de contemplar.
Mas ainda há esperança. Em meio a tanto vazio, há artistas que resistem — compositores, cantores, pintores, poetas que não se conformam com o óbvio. Gente que acredita que a arte deve despertar e não adormecer. Gente que ainda busca beleza, verdade e sentido.
Por isso, precisamos continuar perguntando:
O que é arte?
A arte é aquilo que faz pensar, não apenas sentir. É o que transforma, não o que aliena. É o que liberta, não o que aprisiona.
Quando um quadro feito de fezes é aplaudido, devemos perguntar: qual é a mensagem?
Quando uma música reduz a mulher a um corpo, devemos perguntar: quem está lucrando com isso?
E, sobretudo, quando deixamos de nos importar com o conteúdo, devemos perguntar: o que está acontecendo conosco?
A arte é o espelho da sociedade. Se o reflexo está distorcido, talvez não seja o espelho o problema — mas quem se olha nele.
Talvez o desafio dessa geração seja reaprender a olhar.
Reaprender a ouvir.
Reaprender a sentir.
E, acima de tudo, reaprender a pensar.
Porque, no fim, a arte continuará existindo — com ou sem nós.
A questão é: que tipo de arte estaremos deixando para o futuro?
Por Sérgio R. C. Alcântara






