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Rua Francisco Montenegro, Alagoa Grande. São 14 horas. Na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a presidente Margarida Maria Alves, 50 anos, completos na semana anterior, está reunida com o tesoureiro da entidade, Antonio Ramos. Haverá, em poucos dias, uma grande campanha salarial movida por 32 sindicatos na qual se exigirá assinatura da carteira de trabalho, pagamento do 13º , férias anuais.

O ano é 1983. A reivindicação é mais do que justa. 90% dos trabalhadores rurais da região não possuem a situação regularizada. Das 250 propriedades rurais da cidade, em apenas duas se pagava, regularmente, os direitos trabalhistas.

É sexta-feira. Não muito distante dali, nas imediações da igreja Nossa Senhora de Boa Viagem, um Opala vermelho, com placas frias do Rio Grande do Norte, com quatro ocupantes, circula vagarosamente pela região. É em uma daquelas casas simples da rua Olinda que mora Margarida. São 17 horas. No descanso do lar, encostada na segunda janela, da direita para a esquerda, Margarida observa o filho de 8 anos, Arimatéa, que joga bola de gude com os colegas no terreiro de sua casa. Ele está ansioso. É sua vez de iniciar a brincadeira.

Da cozinha, a irmã Joaquina Maria Marinho lhe traz milho assado. Margarida repete um gesto ao qual esteve acostumada em toda a sua vida: dividir. Dá metade da espiga ao marido. “Toma filhinho”. Era assim que Margarida chamava o seu esposo Severino Cassimiro Alves, 65 anos, com quem estava casada desde 1971. Ele está de costas para a mulher, assistindo televisão. Imagina que em pouco tempo a terá ao seu lado.

Amanhã, completará 30 anos que daquele Opala vermelho, onde estavam quatro ocupantes, sairá um homem. Óculos escuros, cabelo afogueado, chapéu preto. Traz algo entre as mãos. Um saco de supermercado. Como era comum vir pessoas necessitadas, com braço quebrado, por exemplo, não se imaginou que escondesse uma arma.

“A senhora é dona Margarida?”. No carro, em que estava o proprietário do veículo Biu Genésio, ficaram também os irmãos Amauri e Amaro José do Rego. A pergunta era mera retórica. Quem a fez, o pistoleiro e soldado da Polícia Militar, Betâneo Carneiro dos Santos, seguramente, sabia quem era vítima. O que não se sabe é o motivo de até hoje o crime ter ficado impune. Nenhum dos indiciados cumpriu pena. Os artifícios jurídicos e a morosidade da justiça selaram a impunidade.

“Sou eu, o que o senhor deseja?”. O tiro foi disparado de uma espingarda calibre 12. A parede, onde ficavam pendurados seis molduras com retratos da família, salpicou-se toda de sangue. Foi preciso 5 horas para se localizar a orelha. Fragmentos do cérebro avoaram pela sala. A cidade, misteriosamente, permaneceu sem luz durante 15 minutos seguidos ao crime, o que favoreceu a fuga.

COMISSÃO INTERAMERICANA AVALIA O PROCESSO

Hoje, entidades de defesa dos Direitos Humanos, Sindicatos e Associações, em Alagoa Grande, realizarão, das 14h às 16h na cidade, um evento, que integra a programação especial em memória de Margarida. Ocasião em que se celebram os seus 80 anos de nascimento e se protesta contra os seus 30 anos de assassinato.

Em 21 de agosto de 1983, Ricardo Kotscho, escrevendo na Folha de São Paulo, relatou que “O governador da Paraíba, Wilson Braga, que determinou todo o rigor à Secretaria de Segurança nas investigações para identificar os responsáveis pelo assassinato, solicitou ainda ao Tribunal de Justiça a formação de uma Comissão Judiciária com o mesmo objetivo. Mas o Código de Organização Judiciária prevê a constituição de uma Comissão Judiciária apenas em casos de ‘grave perturbação da ordem’, o que, segundo alguns juristas do TJ paraibano, não está acontecendo em Alagoa Grande”.

Em 2001, ou seja, 18 anos após o crime, foi a julgamento somente um dos acusados de ser o mandante do assassinato, o médico e fazendeiro José Buarque de Gusmão, conhecido como Zito Buarque, que era o administrador da Grande Usina Tanques. A absolvição veio por 5 votos a 2, pelo Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB). A questão foi levada ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que manteve, em novembro de 2002, a decisão do TJPB.

Em 2008, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) deu parecer pela admissibilidade, na denúncia encaminhada contra a República Federativa do Brasil. Porém, até o momento, não houve julgamento de mérito.

Em seu relatório, intitulado “Brasil Caso 12.332”, relatório “9/8”, no capítulo III, item 22, se registra: “(…) A demora processual resultou em graves obstáculos à elucidação dos fatos. Dos quatro suspeitos que constavam da denúncia do Ministério Público de 1995, só um foi levado a julgamento. O acusado Edgar Paes de Araújo (aliás Mazinho) foi assassinado em 1986. Aguinaldo Veloso Borges, acusado de outros crimes, faleceu em 1990. No tocante ao réu Betâneo Carneiro, suposto membro de um famoso grupo de extermínio, foi beneficiado pela prescrição penal, uma vez que, de acordo com o artigo 115 do Código de Processo Penal brasileiro, a pena é reduzida em favor de menores de 21 anos no momento em que se comete o crime de que é acusado. Assim, Betâneo Carneiro foi excluído do processo penal em 1997. Apesar das diversas ordens de captura emitidas contra ele com relação a outros crimes, desconhece-se o paradeiro desse acusado.”

LUTA PELO CUMPRIMENTO DAS LEIS

Margarida era uma líder apegada à lei. Conhecia os direitos dos trabalhadores e não perdeu nenhuma causa. Em edição do dia 28 de agosto de 1983, o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, noticiava que “(…) Nos últimos três anos, produtores da região foram chamados cerca de 500 vezes ao sindicato, para ouvir reclamações dos trabalhadores, e mais de 100 ações tramitaram na Junta de Conciliação e Julgamento de Campina Grande (…)”.

Em um encontro com trabalhadores da zona canavieira, cujo discurso foi registrado no livro “A mão armada do latifúndio: Margarida quantos ainda morrerão?” (A União, 1984), de Sebastião Barbosa, a líder sindical argumentou: “(…) sabemos que existe mais leis sem que haja o seu cumprimento. Sabemos que existe a Lei 4.504 que dá direito aos trabalhadores e define (que) a legislação agrária seja executada em nosso país (…).

Naquela mesma ocasião, arrematou com o mesmo tom intrépido que lhe era característico: “(…) o trabalhador não pode continuar marginalizado, jogado nas pontas de ruas, morando nas favelas das cidades, morando nos morros porque aqui não tem mais terra e nem mais espaço para ele morar e trabalhar. Enquanto isso, vemos as propriedades cheias de capim e cana sem vez para o trabalhador rural, mas isso vai mudar, custe o que custar porque jamais merece o nome de líder sindical quem não tiver coragem de defender o direito da sua classe”.

Em 12 de outubro de 1982, no domingo, o presidente João Figueiredo, último do ciclo da ditadura militar, lia, num programa semanal que mantinha na Rede Globo de Televisão, “O Povo e o Presidente”, a carta que lhe enviara Margarida Maria Alves. No dia seguinte, a edição do Jornal do Brasil fazia menção ao comentário do presidente. “Em resposta à carta de Margarida Maria Alves, de Alagoa Grande, Paraíba, que acusou usinas, engenhos e fazendas de não pagarem o salário mínimo aos trabalhadores, o Chefe do Governo salientou que ao formular a nova política salarial de seu Governo ela teve como diretriz não só que o trabalhador tenha direito a receber proventos para enfrentar o custo de vida, mas que lhe permitam melhorar o seu padrão de vida”.

ENTRE O PARTIDO DA DITADURA E O PT

Desde 1979, com a decretação da Anistia, foi dissolvido o regime bipartidarista, que dividiu, durante boa parte da ditadura militar, as representações em duas legendas, a ARENA, de sustentação ao regime de exceção, e o MDB, oposicionista.

O remanescente da situação reformulou-se no PDS, em 1980, ano em que também foi fundado o Partido dos Trabalhadores. Margarida chegou a filiar-se à legenda governista, vindo, inclusive, a fazer campanha para candidatos deste partido. É o que diz a edição de 28 de agosto de1983, do Jornal do Brasil: “Margarida Maria trabalhou para o candidato majoritário do PDS, Wilson Braga, de quem era amiga e que foi eleito governador. Após a campanha, porém, começou a simpatizar com o PT, que, em novembro, teve apenas um voto em Alagoa Grande”.

Em matéria publicada no jornal O Norte, de 14 de agosto de 1983, a ligação com o partido, herdeiro dos militares, é corroborada. “O deputado Aércio Pereira (PDS) faz questão de ressalvar que ‘Margarida era uma correligionária nossa, uma pessoa ligada ao meu partido, o PDS, e não mediremos esforços para que a sua morte não seja usada para outros fins’”.

Esta aparente contradição foi estudada pela pesquisadora da pós graduação em Educação da UFPB, Ana Paula Romão de Souza Ferreira em “A Trajetória Político Educativa de Margarida Alves: entre o velho e o novo sindicalismo rural”, pós graduação em educação, 2010.

A melhor resposta para o seu comportamento provavelmente esteja em um pronunciamento feito em homenagem ao sindicalista José Martins, em que a Margarida disse: “O Governo está na obrigação de atender à reivindicação do povo. Seja qual governo for. De qualquer partido que seja. Não interessa partido para mim. Não vale nada. O que vale são as pessoas. O que interessa são os homens”.

CANONIZAÇÃO E DIA NACIONAL DE LUTA

No último Dia do Trabalhador de sua vida, Margarida esteve em Sapé. Cidade que foi palco da luta das Ligas Camponesas, nos anos 1960. Em depoimento citado na dissertação de Ana Paula Romão, Margarida recorda aqueles tempos. “Eu me lembro em 1962 quando o sindicato foi fundado se falava muito nas ligas camponesas, na jornada de trabalho, que trabalhador dava dez, doze horas. Mas o padre não dava apoio às Ligas. E como eu era muito religiosa. Mas sempre achando que as Ligas tinham razão”.

Foi naquela ocasião, no solo em que tombou outro mártir da luta agrária, João Pedro Teixeira, que Margarida fez um dos seus mais fortes pronunciamentos: “Companheiros, a prepotência dos proprietários rurais de Alagoa Grande estão oprimindo a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e ainda na última sexta-feira recebemos uma agressão, mas quero dizer a vocês que não tememos qualquer ameaça e vamos a luta até o fim por melhores condições de vida dos trabalhadores rurais da Paraíba, porque entendo que é melhor morrer na luta do que morrer de fome”.

Em outubro de 1987, bispos brasileiros que participaram do sínodo da Igreja Católica daquele ano, atendendo ao pedido do então Papa João Paulo II, incluíram, numa lista tríplice, o nome de Margarida Maria Alves, entre os leigos que poderiam ser canonizados. A proposta, entretanto, não foi atendida pela Santa Sé.

Em 2007, o dia 12 de agosto, em homenagem à Margarida, foi escolhido para se celebrar o Dia Nacional de Luta contra a Violência no Campo e pela Reforma Agrária.

 

Astier Basílio – astierbasilio@gmail.com

Texto publicado, com alterações, em 22 de maio de 2014, no Correio da Paraíba.

(No título da reportagem a Folha Patoense alterou os “30 anos”, do texto original, para “35 anos”, mas no texto permanece exatamente como foi veiculado no Correio da Paraíba)

 

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