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         Estarmos sempre no seio da nossa família é um dom supremo que Deus nos oferece para que possamos suportar as agruras da vida. Dentro da família é onde crescemos intelectual, moral e espiritualmente. Embora não seja regra geral.

        Infelizmente, mil motivos nos levam a nos afastar dos nossos pais, dos nossos irmãos e dos nossos amigos de infância. Os filhos se afastam dos pais, os irmãos dos irmãos. Sem falar numa possível e nefasta separação dos nossos pais. Para os filhos, é uma separação catastrófica, onde poucos escapam sem sequelas irreparáveis. É onde há o desmoronamento intelectual de quase todos os membros. A pior das separações, porque traz consequências devastadoras em todos os sentidos. A vida se torna muito difícil para as vítimas.

        Uma das principais causas de separação entre pais e filhos é, sem dúvida, os nossos estudos, porque, na maioria das vezes, a cidade em que nascemos e fomos criados, não possui boas escolas e universidades. Como é penoso, doloroso e desgastante quando somos obrigados a nos afastarmos dos nossos familiares para darmos continuidade ao nosso aprendizado… Entretanto, nessas circunstâncias, existe uma vantagem: o nosso engrandecimento interno, pelas provações pelas quais passamos.

        Já senti e sofri muito quando tive que me separar dos meus pais. Agora sofro com a ausência dos meus filhos, da minha neta… Graças a Deus, aos poucos eles estão retornando. Mas entendo que devemos tudo isso às dimensões do nosso país e, principalmente, da sua infinita pobreza e da inoperante política social adotada.

        O problema do Brasil é que tudo, invariavelmente, acontece nas regiões sul e sudeste. Forçosamente, é lá que iremos encontrar condições para aperfeiçoar nossos conhecimentos profissionais. Infelizmente.

        Saí de casa aos 19 anos de idade para prosseguir, dar continuidade, concluir e aperfeiçoar meus estudos em João Pessoa (Liceu Paraibano), Campina Grande (Faculdade de Medicina), João Pessoa (Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Paraíba) e Rio de Janeiro (Residência Médica no Instituto Estadual de Radiologia e Medicina Nuclear).

        O meu tio, Hiran Ayres de Araújo, médico otorrinolaringologista do Hospital Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, casado com uma carioca, Marina Lodi, portadora de excelente formação ética e moral, foram o nosso ponto de apoio na antiga Cidade Maravilhosa. Tia Marina, principalmente, ela, porque foi, durante dois anos, uma segunda mãe. Senão, acho que não aguentaria…

        Meu tio Hiran Ayres de Araújo tinha se formado, como médico, no Rio de Janeiro e, por lá, fez sua especialização. Casou-se, e foi ficando, ficando, ficando… Até se casar. Casou-se aos 40 anos de idade, e tiveram um casal de filhos.

        Mesmo com todo esse apoio que tivemos no Rio, quando concluímos nossa Residência Médica, resolvemos retornar à nossa cidade natal. Contei os dias para que esta data chegasse. Na verdade, eu queria mesmo era estar junto dos meus pais; perto da família. A saudade de casa era tamanha que, certo dia, ainda no Rio, senti alguns sintomas de hipertensão ou estresse, e tive que fazer consulta com um famoso cardiologista do Rio. Coincidência: Dr. Luís Feijó, o cardiologista, tinha sido colega do meu pai quando ambos cursaram a Faculdade de Medicina de Praia Vermelha. Ao me examinar, Dr. Luís Feijó constatou: banzo! Mas, a partir daí, desenvolvi hipertensão arterial essencial, com a qual convivo até os dias atuais. Ela chegou do nada. A distância, a saudade de casa me pregou esta peça. Na ocasião da consulta, o Dr. Luís Feijó brincou, dizendo que ainda não haviam seccionado meu cordão umbilical. Acredito que seja verdade. Minha mãe deve ter jogado um pedacinho do meu cordão umbilical sobre o telhado da casa da Vila Doracy.

        Sobre a minha família, começo pelo meu pai.

        Ele era filho primogênito do casal José Peregrino de Araújo Filho (médico) com Maria Firmino Ayres de Araújo. Dr. José Peregrino de Araújo Filho (Dr. Pedro Peregrino, como era mais conhecido, para não ter seu nome confundido com o do pai, José Peregrino de Araújo Filho) era filho do Desembargador José Peregrino de Araújo (18.11.1840), natural da cidade de Várzea, na Região de Santa Luzia, no Vale do Sabugy, com Ernestina Leite Ferreira, do Vale do Piancó. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito de Olinda, na mesma turma do estadista, diplomata e historiador José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco. Quando ainda advogado, ocupou o cargo de Secretário de Segurança Pública do Estado da Paraíba, em 1878 (aos 38 anos de idade). O Desembargador José Peregrino de Araújo ainda teve uma breve passagem pela cidade de Caicó (RN), onde foi Juiz de Direito. Neste estado foi partidário do senador José Bernardo de Medeiros, a quem ajudou em duas campanhas políticas, contra o chefe político daquele Estado, Pedro Velho. Ao retornar à Paraíba, conseguiu eleger-se Deputado Federal. Com o título de Desembargador, foi convidado para candidatar-se a governador do Estado da Paraíba, em 1900. Derrotou o candidato da oposição, João Tavares. A oposição ainda tentou impugnar as eleições. O inimigo número UM do Desembargador José Peregrino de Araújo, Antônio Massa, que se dava muito bem com o Ministro do Interior, o paraibano Epitácio Pessoa, ainda tentou anular as eleições, argumentando que houvera fraude. (Qual campanha política, no mundo, que não há fraude?). O que realmente aconteceu: o sistema de votação favorecia muito o candidato da situação (como hoje), no caso o Dr. José Peregrino de Araújo que, por sinal, já tinha ocupado o governo anterior da Paraíba, como vice-presidente ou como vice-governador. Meu bisavô foi o 5º presidente/governador do Estado da Paraíba. Antes dele vieram: Venâncio Augusto de Magalhães Neiva, uma Junta Governativa, Álvaro Lopes Machado e Antônio Alfredo da Gama e Melo. Quando o Desembargador José Peregrino de Araújo assumiu o comando do Governo Estadual, o quadro era de falência generalizada (nada mudou, até hoje, em nosso Estado). As verbas federais não vieram (grande novidade), e a agitação nas ruas da Capital era generalizada. A Oposição tinha do seu lado, o quarto poder: a imprensa (marrom). Aquela imprensa mentirosa, denegrindo a imagem do político, a imprensa que desvirtua a situação, que promove a intriga, que informa sem provas, a imprensa irresponsável, tendenciosa e interesseira. Com os jornais da época ao seu favor, Antônio Massa mandava ver com quantos jornais (O Comércio e O Combate) se fazia uma oposição. Faziam parte da sua tropa de choque oposicionista: Arthur Achilis, Oscar Soares, Álvaro de Carvalho, Claudino Carneiro da Cunha, Mateus Ribeiro, Coriolando de Medeiros, Neves Filho, Eugênio Ribas e Francisco Falcão. Quando a Oposição começou a se impor, o Desembargador José Peregrino de Araújo resolveu não deixar nada sem resposta, e decidiu revidar. Como se diz no Sertão da Paraíba: remédio de doido é doido e meio! Então, o comandante da Polícia Estadual, Vitorino do Rego Toscano de Brito, e seus auxiliares, Irineu Veloso e Augusto Borba receberam ordens do Governador/Presidente da Paraíba, Desembargador José Peregrino de Araújo, para destruir as máquinas da tipografia dos dois jornais, o que foi feito ao pé da letra. Com isso, o ânimo dos oposicionistas serenou. Afastado da política, o Desembargador, falecia aos 06 de setembro de 1913.

        O Desembargador José Peregrino de Araújo era filho do “capitão” Anastácio Freire de Araújo com Gertrudes de Jesus Freire de Araújo, proprietários da Fazenda Sossego, no município de Santa Luzia. Dona Ernestina Leite Ferreira era filha do casal Izidro Leite Ferreira de Sousa, que tinha sido Deputado Provincial no período Monárquico, e de Dona Maria Leite Ferreira. Maria Firmino Ayres de Araújo (Dona Marica), minha avó, era filha do casal Firmino Ayres Albano da Costa (proprietário de grandes glebas de terras e influente político no Vale do Piancó. Concunhado e amigo do “coronel” Miguel Sátyro e Sousa, este o nomeou prefeito de Patos, atividade que exerceu por 15  longos anos) e de Dinamérica Lúcio Sátyro e Sousa. Tiveram sete filhos: Severino Aires de Araújo (médico) (Aires com “i” e não com “y”, por erro do cartório), Hiran Ayres de Araújo (médico), Firmino Ayres de Araújo (militar da aeronáutica, brigadeiro-do-ar) Osman Ayres de Araújo (médico), Walter Ayres de Araújo (odontólogo), Odimar Ayres de Araújo (Bá) e Alcy Ayres de Araújo. Todos falecidos.

        Dr. José Peregrino de Araújo Filho era médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde residia o seu pai, Desembargador José Peregrino de Araújo. Dr. José Peregrino de Araújo Filho colou grau como médico no dia 26 de setembro de 1904. Em 1934, elegeu-se para a Assembléia Estadual Constituinte, mas preferiu voltar às suas atividades como médico, em Patos.

        Dr. José Peregrino de Araújo, na ocasião em que o filho cursava medicina, no Rio de Janeiro, era Deputado Federal pela Paraíba, entre 1896 e 1900. O Rio de Janeiro era, à época, a Capital Federal do Brasil.

        Dr. José Peregrino de Araújo Filho e Dona Maria Firmino Ayres de Araújo moravam num antigo casarão na Praça João Pessoa (hoje, Praça Edvaldo Mota), na cidade de Patos.

        Apesar de ser um fato desagradável para a família, e tendo como protagonista o meu bisavô, Desembargador José Peregrino de Araújo, existiu um fato que eu não poderia deixar passar em branco, só pra mostrar pelo que as pessoas são capazes de passar para sobreviverem à política.

        Quando meu bisavô presidia o Estado da Paraíba aconteceu um fato inerente à política. A politicagem, eu já relatei meu posicionamento em relação à ela, e, por isso passo a relatar um fato que me constrangeu.

        O título é: A Peleja de Zuza Lacerda e Zé Peregrino.

        Conta o senhor Lourival Inácio Filho, que o sertanejo itaporanguense Zuza Lacerda (ou “Coronel” José Cavalcante Lacerda) fundara a República de Estrela. Zuza Lacerda havia declarado que, parte de Misericórdia, à época, distrito de Boa Ventura e Curral Velho (fazenda dele), seriam desmembradas e independentes (politicamente) do município de Itaporanga. E, ao mesmo tempo, também estariam independentes do Estado da Paraíba. Daí surgiu a República de Estrela, composta por Misericórdia e Curral Velho. Isso teria ocorrido entre os anos de 1905 e 1910. Segundo Lourival Inácio Filho, o movimento separatista não tinha cunho ideológico, mas tão somente episódios coronelísticos por disputa de poder local. Para entender como Zuza Lacerda tinha ganhado a fama de “Coronel” e prestígio, faz-se necessário dizer que, naquela época (1870), era freqüente a presença de cangaceiros na região. Eles tanto saqueavam as cidades como aterrorizavam seu moradores. Um desses bandos de cangaceiros achou por bem aterrorizar as cidades de Misericórdia, Piancó e Pombal. Os cangaceiros tinham vindo das bandas da cidade de Esperança, localizada na fronteira da Paraíba, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte. Principalmente, a região do Sertão. O bando (os Viriato) de cangaceiros era chefiado pelo bandoleiro Viriato. Quando a notícia dessas bandidagens chegou ao Rio de Janeiro, houve recomendação para que os cangaceiros fossem combatidos, e uma força policial se deslocou da Capital Paraibana para o Sertão.

        Foi quando surgiu em Misericórdia, o “Coronel” José Cavalcante Lacerda. Ele ficou à linha de frente da força policial, como alferes e delegado. Durante uma semana, eles passaram caçando os cangaceiros que culminou com as prisões de quase todos os Viriato. O desbaratamento de todo o bando de cangaceiros durou um mês, e terminou na Fazenda Jenipapo (município de Conceição), quando Zuza Lacerda e seus soldados, depois de intenso tiroteio, deram fim ao último Viriato. Esse feito mereceu citação no relatório do Presidente da Província da Paraíba, em 1879.

        Zuza Lacerda viu seu prestígio e fama crescer, sendo elevado à patente de Coronel da Guarda Nacional, firmando-se, também, eleitoralmente como líder político de Misericórdia. Daí em diante, Zuza Lacerda ganhou prestígio, chegando a uma cadeira na Assembléia Legislativa. Sua influência e o seu poder político chegaram a tal ponto que ele se tornou amigo íntimo do Desembargador José Peregrino de Araújo, que era candidato ao Governo do Estado.

        Após as eleições, para o mandato de 1901 a 1904, o governo oficial elegeu o Desembargador José Peregrino de Araújo, e a Oposição elegeu uma chapa composta por João Tavares Antônio Massa e Flávio Maroja. Portanto, dois governadores foram empossados. É aí onde entra a participação decisiva de Zuza Lacerda na história, ainda segundo relato do senhor Lourival Filho.

        O Coronel (amigo do Desembargador) deslocou seu grupo armado para socorrer José Peregrino de Araújo. O que aconteceu? O Desembargador José Peregrino de Araújo tomou posse, mas sob forte pressão dos seus opositores, inclusive a imprensa, sob a tutela dos jornais O Comércio e O Combate.

        Agora, o “agradecimento” do Desembargador José Peregrino de Araújo (meu bisavô) ao Coronel Zuza Lacerda.

        A mando do já Governador da Paraíba, Desembargador José Peregrino de Araújo, chegou para residir em Misericórdia o deputado genro de José Peregrino de Araújo, Wenceslau Lopes, o que interferia no poder e no prestígio do Coronel Zuza Lacerda na região, perante o governo: José Peregrino de Araújo preferiu apoiar (politicamente) o genro ao Coronel Zuza Lacerda, que o havia tirado de maus lençóis. Resultado: Zuza Lacerda perdeu seu poder na região e o Deputado Wenceslau Lopes se firmou como líder político da região. Desprestigiado e frustrado com a política, o Coronel Zuza Lacerda tornou a residir na sua Fazenda Curral Velho, mas sem se conformar com a perda do poder local. Então, cismou e anunciou a Independência de Misericórdia, fundando a República de Estrela no Distrito de Boa Ventura, e partiu para a luta armada contra o pessoal do Deputado Wenceslau Lopes, que não conseguiu reagir diante da investida do Coronel Zuza Lacerda. Já no fim do mandato do sogro governador o deputado resolveu deixar em paz o reduto do Coronel Zuza Lacerda. O Coronel também deu por encerrada a inoportuna República de Estrela.

        Não queria contar este fato, mostrando como é feita (não a verdadeira política), a politicagem do desagradecimento. Mas não sou omisso, mesmo em se tratando do meu bisavô, porque entendo que não é dessa forma que devemos nos comportar com quem um dia, estendeu-nos a mão. Mesmo em se tratando de um genro, em detrimento de quem arriscou a vida por um capricho meu. Conto essa história porque sou leal aos meus princípios, à lealdade incondicional, à retidão, à honestidade, à sinceridade e à franqueza. É um dever de quem se dá o respeito, demonstrar isenção em tudo que realiza e faz. Há muitos anos li uma frase do diplomata e escritor português, Eça de Queirós, onde ele dizia que os políticos e as fraldas devem ser trocados, frequentemente, pela mesma razão. Nunca me esqueci disso.

        Pelo lado materno, a história começa com meus bisavós Belizário Dantas Correia de Góes (Padre Belizário) e Benigna dos Passos Wanderley (Dona Bilú), que eram pais do meu avô José Belizário Dantas Wanderley. Já o “major” Fideralino Pereira Monteiro Wanderley e Francisca Sátyro de Sousa (Dona Chiquinha) eram pais da minha avó, Maria de Sousa Wanderley (Dona Lica). Tanto o ramo paterno como o ramo materno da família da minha mãe eram constituídos por primos que se casaram entre si, prática costumeira nas famílias Dantas e Wanderley até os dias de hoje. Minha mãe, Doracy Dantas Wanderley tinha como irmãos: Jaime, Moacir, Nezita, Estela e Graziela. Todos falecidos.

        Belizário Dantas Correia de Góes, meu bisavô materno, quando enviuvou, não quis mais saber de casamento, preferindo entrar para o seminário na cidade de Fortaleza, onde se ordenou padre. Depois se transferiu para o seminário de João Pessoa, de onde saiu sacerdote, tendo ficado mais conhecido como Padre Belizário. Como fato curioso, quando foi vigário da cidade de Santa Luzia, adquiriu um automóvel marca Ford, movido à gasolina, que ficou sendo conhecido como “a barata do Padre Belizário”. Foi ele quem celebrou a cerimônia de casamento dos meus pais (Severino Aires de Araújo com Doracy Dantas Wanderley). O casal teve cinco filhos.  

        De formação “católica apostólica romana” praticante, o casal decidira que as iniciais dos filhos, juntas, deveriam formar a palavra DEUS, e foram nascendo Duílio, Egione, Urd e Stênio. Quando nasci, por não me encontrar nos “planos” dos meus pais para vir ao mundo, constituindo a família Wanderley de Araújo, a coisa embaralhou. O casal ficou sem saber que nome daria àquela criança que, de uma hora pra outra, tinha inventado de vir ao mundo e entrar na família já constituída. Depois do susto da gravidez inesperada, a qual fora tão dolorosa para minha mãe em decorrência da incompatibilidade sanguínea (ela tinha Rh positivo e eu negativo), não restava outro procedimento senão encontrar nome para o filho “caçula”, o “fim de rama”.

        Minha mãe, durante a gestação, desenvolveu no sangue, aglutininas (espécie de anticorpo) anti-Rh negativo, como se eu fosse um corpo estranho, e isso determinou que o organismo dela rejeitasse o feto com Rh negativo diferente do Rh dela. O final seria, normalmente, o aborto, não fosse a intervenção dos médicos que a acompanhavam. O mesmo fato já deveria ter ocorrido quando da primeira gestação, mas minha mãe não desenvolveu quantidades suficientes de aglutininas contra o seu primeiro concepto por ser este um processo lento e progressivo. Quanto no quinto filho gerado, as aglutininas que iam se formando no sangue da minha mãe, desde a primeira gravidez, chegaram a uma quantidade suficiente para causar o que denominamos de Eritroblastose Fetal. Quase que me ferro. Graças a um tratamento eficaz administrado por profissionais médicos na cidade do Recife, à base de transfusões sanguíneas, estou aqui para contar a história. Por este motivo, quando ela estava de bom humor, dizia que eu começara a lhe dar trabalho desde o momento em que fui gerado. Agradeci a todos por estar vivo. Inclusive a ela, que, num momento de desespero, quando os médicos queriam me retirar, ainda prematuro, do seu útero, ela, num momento de descuido das enfermeiras, abandonou o hospital onde estava interna, deixando em polvorosa os médicos que a assistiam na cidade do Recife. Com esta atitude, ela demonstrou aos médicos que o filho dela nasceria de qualquer forma. Eles que encontrassem um meio para que isso fosse possível.

        Cheguei ao mundo na antevéspera do dia de Natal (23 de dezembro de 1949). Depois de procurarem por um nome para aquele filho caçula, meu pai, apaixonado pela história medieval e pela literatura mundial, encontrou numa vetusta Enciclopédia Britânica o nome, para ele, ideal: CADMO. Mas precedido pelo nome do pai de Jesus, José. Minha Mãe fazia esta questão. Ela queria que assim fosse, pois o nome José Cadmo teria as iniciais que formariam no nome de Jesus Cristo.           

        Prosseguindo sobre meu pai.

        Era um homem pacato, afável, sereno, calmo, tranquilo e competente médico. Nada o incomodava ou não demonstrava se incomodar com pormenores. Nada o perturbava, pois era comedido, respeitoso, paciente, compreensivo e tolerante. Tinha a fala mansa, mas firme. As passadas e os gestos eram lentos, mas decididos. Nunca tinha pressa, mesmo que a situação exigisse, porque dizia que tudo tem sua hora para acontecer; se acontecer é porque chegou a hora. Não alterava o tom da sua voz. Possuía uma memória privilegiada, e a sua inteligência era muito acima da média. A facilidade com a qual se relacionava com as pessoas tornava-o possuidor de um sem número de amigos, e eles o adoravam pela sua mansidão, conversa amena, pela calma e ponderação. Meu pai era de uma bondade tamanha que, segundo seus amigos, ele tinha pena até do diabo. Os amigos também o admiravam pela sua objetividade, pela lealdade e pela sinceridade. Nas horas de lazer, a Sorveteria Iracema, na Rua Grande, era o estabelecimento preferido do meu pai, para tomar alguns copos de cerveja e jogar conversa fora. Foi nessa sorveteria que conheceu minha mãe. Era o ponto de encontro daqueles que estavam em evidência na embrionária sociedade de Patos.

        No princípio, assim que chegou a Patos, praticou as especialidades de ginecologia e obstetrícia; achou-as muito desgastantes, porque tinha de, várias vezes e em qualquer hora do dia ou da noite, andar em lombo de burro ou cavalo para fazer partos em pacientes domiciliadas na zona rural, em condições precárias e desfavoráveis. Por isso, resolveu-se pela pediatria, área da medicina na qual também se encontrava apto. Na época em que estudou medicina, o médico tinha que ser polivalente, tinha que dominar, principalmente, as áreas de ginecologia, obstetrícia e pediatria. O médico não tinha especialidade, mas todas as especialidades. Ele preservava na memória privilegiada, fórmulas e mais fórmulas químicas dos mais variados tipos de medicamentos aprendidos na Faculdade de Medicina de Praia Vermelha, a qual não formava especialistas, mas médicos. Suas receitas continham as fórmulas químicas que representavam substâncias ativas muito bem manipuladas pelo farmacêutico formado e também da sua irrestrita confiança, Dr. Basílio Serrano, proprietário da Farmácia Serrano, em Patos.                  

        Meu pai tinha cabelos crespos, de uma coloração castanho-escura, e se encontravam sempre penteados para trás, fixados à custa de generosa quantidade de brilhantina Glostora, e refletiam os raios do sol com um brilho esplendoroso. Cultivava espessos bigodes, cujas pontas eram aparadas em seus mais amplos contornos. O charuto, da marca Cesário, vindo especialmente da Bahia, era seu companheiro inseparável, nas horas de meditação e descanso. Um café bem forte, ao acordar da soneca após a sesta, era prontamente seguido por baforadas aromáticas do charuto baiano. A fumaça das tragadas inundava toda a casa com seu cheiro forte e adocicado. Café e charuto eram com ele mesmo. Engraçado era que a cafeína não lhe promovia efeitos colaterais; não o estimulava; não o deixava mais alerta… Era viciado em café e charuto mais para deliciar-se despreocupadamente, e não para amenizar preocupações ou ansiedades. Aliás, neste estado emotivo, esquecia ambos. Tanto um como o outro eram uma espécie de bálsamo. O café não era comprado em pó, mas em grãos, e torrado e pisado à mão de pilão na Fazenda Suécia, pelo velho Joaquim Valdevino, o Quincas Borba. Era o mais antigo morador da fazenda, e considerado o melhor torrador de café do município de São José de Espinharas.

        Meu pai, para ser sertanejo do Nordeste do Brasil, até que possuía uma boa estatura. Do alto do seu metro e oitenta de altura, andava sempre enfiado num terno de linho branco, impecavelmente, bem cortado e passado melhor ainda. Era uma exigência do pai dele, também médico, Dr. José Peregrino de Araújo Filho, desde que se formara. Um dia, conversando com o renomado alfaiate e saudoso Arnaldo Diniz, ele me dizia que meu pai, antes, tinha o costume de atender os pacientes com camisas de manga curta, desobedecendo às solicitações do pai, quanto ao vestuário. Meu pai foi, então, advertido pelo próprio Dr. José Peregrino: “Você está com o traje muito à vontade para ser um médico! Respeite mais seus pacientes e honre mais sua profissão! Vista uma roupa mais decente! Use um terno e gravata. Seja elegante!” Desse dia em diante, o paletó e a gravata passaram a fazer parte da indumentária do dia-a-dia do meu pai, mesmo sob uma “lua” como essa do Sertão Nordestino. Além dessa formalidade, protegia-lhe a cabeça do sol forte um vistoso chapéu tipo Panamá legítimo, confeccionado com palha muito branca e uma fita preta acima da aba. Dava para se notar, desde então, o vício pela sua pulcritude.

        Bom de conversa e desinibido, logo transformava desconhecidos em velhos amigos, principalmente quando o assunto enveredava pelos laços de família. Naturalmente, aonde chegasse, criava um clima agradável e deixava os demais à vontade. Não suportava discutir nem ouvir assuntos constrangedores, principalmente àqueles relacionados à vida particular de quem quer que fosse, e muito menos sabia criticar alguém, porque respeitava os defeitos, a individualidade, os limites, a intimidade, os problemas de cada um. Meu pai não tinha inimigo, e, mesmo se o tivesse, desconhecia-o. Por outro lado, os amigos eram incalculáveis.

        Foi, na concepção da palavra, um verdadeiro pai, pelo seu exemplo e pelos ensinamentos que nos proporcionou. São esses homens que, quando partem, temos dificuldades para aceitar a sua ausência.

        Depois do jantar, ainda me lembro do seu descanso noturno e preguiçoso na cadeira de balanço posta na calçada da nossa casa. Sentado, gostava de colocar uma das pernas sobre um dos braços da cadeira de balanço, e ficava a se balançar horas a fio, soltando baforadas de fumaça de charuto que se dissipavam na escuridão da noite. Era mais um dos seus costumes. Depois, ia caminhar ou passear pelas ruas de Patos. Dizia que era para meditar. Dizia que o ajudavam a ter novas idéias e melhorar o raciocínio. Teve muitos momentos felizes, e as decepções foram poucas.

        Queria me acostumar com sua ausência. Para amainar esta angústia, apego-me aos conceitos de um e de outro personagem que tenho lido, como os do mestre Rui Barbosa. Ele dizia que “a morte não extingue: transporta; não aniquila: renova; não divorcia: aproxima.” Peço a Deus que, ao transportá-lo, renove-o para que ele se aproxime mais de nós, afastando o imenso vazio que deixou. O que é mais difícil é saber que não o teremos mais para pedir ajuda, contar da nossa felicidade, das nossas alegrias, falar-lhe dos nossos momentos difíceis, dos nossos pesadelos, das nossas angústias ou, simplesmente, para ainda chamá-lo de pai. Quando sonho com meu pai e acordo, vejo que tudo não passava de um sonho. Vem uma saudade imensa… Procuro, então, não pensar no sonho, procuro dissimular… Intimamente, é muito desconfortável pensar que não temos mais um ponto de apoio, quando ainda temos pouca idade ou não amadurecemos o suficiente para seguirmos nossas vidas.

        Lá da nossa casa, bem pertinho da dele, não escuto mais o som das músicas clássicas que ele costumava ouvir nas manhãs de sábado e domingo. Só o silêncio. Um silêncio que massacra o meu espírito. Ensurdecedor, ao mesmo tempo, desconfortável e angustiante. Como mudaram meus sábados e domingos… Alcides Carneiro dizia que “as recordações são um martírio; não sei por que dizem que recordar é viver; recordar não é viver; pois quem vive de recordações vive de lembranças e quem vive de lembranças morre de saudades.” Posso dizer que, hoje, vivo de sonhos; sonhos pequeninos, é bem verdade; tão pequeninos que se encontram sob meus pés; quem quiser se aproximar de mim, pise com cuidado para não esmagá-los.

        Não tivemos tempo de nos despedir. Foi tudo muito rápido. Minutos de inteiro desespero. Ele deitado no leito do quarto sufocado pelo tumor que lhe envolvia os brônquios e invadia seu esôfago. A maior angústia que jamais passei em toda a minha vida, porque não tinha nada a ser feito para aliviar a falta de ar que o sufocava. Não foi uma despedida normal. Existem despedidas que temos tempo de olhar para o nosso pai com ternura. Foi a pior de todas as despedidas. A despedida do meu pai foi triste. Muito triste. Deixou-me uma cicatriz que ainda não pude apagar; inassimilável.

        Para não deixar que a minha cabeça penda sobre o peito, apego-me com orações a respeito de tudo que me tem acontecido, e encontrei outra do mestre Rui Barbosa (sempre ele), que diz, mais ou menos, assim: “se um dia, já homem feito e realizado, sentires que a terra cede aos teus pés, que tuas obras desmoronaram e que não há ninguém à tua volta para te estender as mãos, esquece a tua maturidade, passa pela tua mocidade, volta à tua infância e balbucia entre lágrimas e esperança as últimas palavras que sempre estarão na alma: minha mãe, meu pai!”

        O professor de filosofia americano, Morrie Schwartz (já falei dele no prefácio) que sofria de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) ou Mal de Lou Gherig, doença que destrói a inervação dos músculos do corpo, dizia que “padecer de uma doença progressiva é viver à sombra da morte.” E, pelo comportamento do meu pai, nos seus últimos dias de vida, ele se sentia assim, pela gravidade da sua enfermidade. Meu pai, por ser médico e sabedor da gravidade da sua doença, perdeu a vontade de viver, e vivia à sombra da morte. Morrie, não. Ele dizia que: “quando se aprende a morrer é que se aprende a viver”. No final dos seus dias, Morrie Schwartz, que vinha suportando a evolução da fraqueza dos seus músculos, ainda disse a um dos seus alunos, Mitch Albom, que o visitara no leito: “esta doença está mexendo com meu espírito, Mitch, mas não vai derrubá-lo; derruba o meu corpo, mas não derruba o meu espírito”.

        Ao contrário de Morrie, meu pai despediu-se do mundo muito antes de partir. Foi como tivesse decidido não lutar contra o mal que lhe corroía o organismo. Trancou-se em copas, calou-se, e preferiu isolar-se no leito de uma rede… Inexplicavelmente, dormia 22 horas seguidas, por dia. Conversava pouco; quase não falava mais.

        Durante sua enfermidade, eu passava longo tempo sentado numa cadeira defronte ao meu pai deitado numa rede; ele, indiferente, com as mãos entrelaçadas sob a cabeça e com o olhar perdido no espaço… Logo ele que gostava de conversar… Mas ele não dava uma palavra. A doença o havia transformado. Mas, se analisarmos direito, é assim. Eu me perguntava por que não o poderia deixar em silêncio?! “Qual o problema do meu silêncio, que inquieta tantas pessoas?!”, ele poderia pensar. Novamente, levei meu pensamento até o filósofo Morrie Schwartz, quando ele questionava por que o silêncio dele deixava as pessoas, que se encontravam ao seu redor, irrequietas. Perguntava ele: “Por que as pessoas só se sentem bem se preencherem o ar com palavras?” Sabedor disso, tinha momentos que eu somente observava o meu pai… Com um tranco dentro do peito. Morrer é um acontecimento triste. Ninguém tem dúvida sobre isso. Mas, parece-me que viver infeliz é pior ainda.

        Mesmo com o silêncio do meu pai, eu insistia, e colocava fitas cassete que eu havia gravado só com suas músicas clássicas prediletas, e ficava ouvindo, com ele, lá no terraço onde meu pai costumava refugiar-se. Entretanto, não trocávamos uma palavra sequer. Ao final da fita, ele apenas balbuciava: “São músicas lindas! Muito bonitas!” Eram músicas clássicas de Strauss, Bach, Mozart, Tchaikovsky, Verdi, Wagner, Schubert, Beethoven, Chopin… Se pudéssemos parar o tempo ou voltá-lo atrás… Mas assim é a vida. A morte põe fim à vida, não à relação. Resta-nos confortarmo-nos. Assimilar a perda; mesmo porque iremos perder mais pessoas importantes nas nossas vidas no transcorrer da nossa curta existência na Terra. Um dia estava eu ouvindo uma música da cantora Vanessa da Mata, quando ela dizia “Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que o pra sempre, sempre acaba…”   

        Por falar no diálogo e no silêncio, existe um poema de Carlos Drummond de Andrade, onde ele diz que existem muitos diálogos: “existe o diálogo com a amada, com o semelhante, com o diferente, com o oposto, com o adversário, com o surdo-mudo, com o possesso, com o irracional, com o vegetal, com o inominado; existe o diálogo consigo mesmo; com as estrelas, com os astros, com as noites, com as idéias, com o sonho, com o passado, como o futuro.” No final ele diz: “escolhe o teu diálogo e a tua melhor palavra ou o teu melhor silêncio; mesmo no silêncio e com o silêncio, dialogamos.” Meu pai deveria estar dialogando com o silêncio; o silêncio estava sendo o seu refúgio. O som de vozes e o entra-e-sai das pessoas foram substituídos pela calmaria quase absoluta e pela solidão que ele mesmo procurou. Hoje, estão recolhendo minha mãe mais cedo. São mais de 93 anos de idade… O casarão da Vila Doracy está mudo. Quieto. Não poderei ver mais meu pai.

        Temos que nos conscientizar também de que algumas vezes perder alguém significa desafios, estímulos… É mórbido dizer isso, mas é verdade. Significa não ficarmos parado no tempo, mas procurar outros amigos. Renová-los. Porém, jamais teremos outro pai. Até nós, um dia, perderemos o que há de mais valioso para nós mesmos: a nossa própria vida. Esta é a única certeza que temos na história da humanidade. Temos temores? Sim. Mas foi assim que ficou determinado. Resta-nos seguir o nosso caminho, porque para quem ficou, a vida continua. Manter o equilíbrio ou de vez em quando, enxugar uma lágrima. Eu sempre fico imaginando o meu pai numa longa viagem até nos encontrarmos em um outro lugar. Eu vou encontrá-lo um dia. Nos momentos difíceis, a gente aprende muita coisa. Por exemplo, aprendi que posso derramar lágrimas por ele ter partido, mas posso agradecer a Deus por ele ter existido.

 

Cadmo Wanderley – Do livro “Contemplando o Jabre”.

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