Por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (7) derrubar a possibilidade de prisão de condenados em segunda instância, alterando um entendimento adotado desde 2016.
Na quinta sessão de julgamento sobre o assunto, a maioria dos ministros entendeu que, segundo a Constituição, ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado (fase em que não cabe mais recurso) e que a execução provisória da pena fere o princípio da presunção de inocência.
O voto de desempate foi dado pelo presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli, o último a se manifestar.
A aplicação da decisão não é automática para os processos nas demais instâncias do Judiciário. Caberá a cada juiz analisar, caso a caso, a situação processual dos presos que poderão ser beneficiados com a soltura. Se houver entendimento de que o preso é perigoso, por exemplo, ele pode ter a prisão preventiva decretada.
A decisão pode beneficiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba e cuja sentença ainda não transitou em julgado, e cerca de 5 mil presos, se não estiverem detidos preventivamente por outro motivo.
Após o julgamento, a defesa de Lula informou que levará à Justiça nesta sexta-feira um pedido de soltura com base no resultado do julgamento do STF
Como voltaram os ministros
A FAVOR DA 2ª INSTÂNCIA | CONTRA A 2ª INSTÂNCIA |
Alexandre de Moraes | Marco Aurélio Mello |
Edson Fachin | Rosa Weber |
Luís Roberto Barroso | Ricardo Lewandowski |
Luiz Fux | Gilmar Mendes |
Cármen Lúcia | Celso de Mello |
Dias Toffoli |
Encerrado o julgamento, o presidente do STF, Dias Toffoli, disse que o Congresso pode alterar o artigo 283 do Código de Processo Penal para determinar em que momento haverá a prisão em caso de condenação.
O ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava Jato no STF, disse que não haverá “liberação automática” de presos em segunda instância. Ele afirmou ainda que “de modo algum” haverá prejuízos no combate à corrupção.
“Do ponto de vista do combate à corrupção, lavagem de dinheiro, deixamos de ter um mecanismo relevante, em meu modo de ver, constitucional. Mas isso não significa que todos os esforços para que haja o devido combate, nos termos da Constituição, deixarão de ser feitos”, acrescentou.
A decisão
Com a decisão, ninguém poderá ser preso para começar a cumprir pena até o julgamento de todos os recursos possíveis em processos criminais, incluindo, quando cabível, tribunais superiores (Superior Tribunal de Justiça, STJ, e STF). Antes disso, somente se a prisão for preventiva.
A decisão tem efeito “erga omnes”, ou seja, vale para todas as instâncias do Judiciário e será vinculante, de cumprimento obrigatório.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 5 mil presos podem ser beneficiados pela mudança de entendimento, se não estiverem presos preventivamente por outro motivo. Levantamento do Ministério Público Federal a decisão do STF pode beneficiar 38 condenados na Operação Lava Jato.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode obter liberdade, já que ainda cabem recursos da condenação dele no caso do triplex em Guarujá (SP). Essa decisão caberá à Justiça Federal do Paraná. Nos casos do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, entretanto, a mudança de entendimento do STF não os tira da cadeia.
No julgamento, os ministros apreciaram três ações declaratórias de constitucionalidade, apresentadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelos partidos PCdoB e Patriota.
Desde 2016, a Corte autorizou a prisão após segunda instância quatro vezes, mas a análise de mérito das ações permanecia em aberto.
Por isso, juízes e até ministros do STF vinham decidindo de forma divergente sobre essas prisões. Agora, será obrigatório seguir o entendimento do Supremo.
Ministros que votaram nesta quinta (7)
Saiba os argumentos utilizados pelos ministros que votaram na sessão desta quinta-feira (7):
Cármen Lúcia
A ministra Cármen Lúcia deu o quinto voto pela manutenção do atual entendimento da Corte, favorável a permitir a execução da pena de condenados em segunda instância.
“Mantenho-me com convencimento que expressei naquele primeiro julgamento [de 2009]”, afirmou a ministra, argumentando que a lei penal deve ser interpretada de modo a “assegurar a eficácia do sistema criminal”.
“Se não se tem a certeza de que a pena será imposta, será cumprida, o que impera não é a incerteza da pena, mas a certeza ou pelo menos a crença na impunidade”, afirmou. Segundo Cármen Lúcia, “os que mais contam com essa certeza, ou com essa crença, não são os mais pobres”.
De acordo com a ministra, os que dispõem de meios para “abusar” de recursos são capazes de postergar a conclusão do processo a fim de garantir a prescrição (momento em que, após um decurso de tempo sem que o caso tenha sido julgado, o réu não pode mais ser punido).
Cármen Lúcia afirmou que, nos tribunais superiores, não se discutem provas e fatos. “O esgotamento da matéria de fato se dá nas instâncias ordinárias [primeira e segunda instância].”
A ministra destacou que, ao permitir a prisão em segunda instância, a jurisprudência do Supremo “marchou no sentido de deixar claro que era necessário que houvesse uma série de garantias asseguradas”, por exemplo, de não permitir excesso em prisões preventivas.
Cármen Lúcia criticou ainda tempos de intolerância que, segundo ela, abrem “caminho para vinganças particulares”. “A intolerância se converte em desrespeito, desrespeito torna-se desconfiança quanto às instituições, gera afastamento.”
A ministra defendeu que “o melhor exemplo” de democracia é a “generosidade de abrir-se ao pensar do outro mesmo quando não se convença da ideia expressa”. “Democracia pratica-se segundo o valor do respeito a posições contrárias”, afirmou.
Cármen Lúcia encerrou seu voto afirmando que presenciou o precário estado da população carcerária brasileira, mas afirmou que “não se está a testar a falibilidade dos processos, mas a busca da melhor interpretação que favoreça os direitos fundamentais previstos no Brasil”.
Gilmar Mendes
O ministro Gilmar Mendes foi o quarto a votar contra a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância.
O ministro afirmou que a legislação penal prevê a garantia que “impede de forma geral o tratamento do réu como culpado até o trânsito em julgado da sentença”. “O ônus da prova é da acusação”, disse.
Gilmar Mendes afirmou que houve “mau uso” das execuções provisórias após a decisão do Supremo, de 2016, que permitiu a prisão após a condenação em segunda instância, com uma “padronização” de decisões. Segundo o ministro, a Corte permitiu a prisão, mas não a tornou obrigatória.
“Os tribunais brasileiros passaram a compreender essa possibilidade como um imperativo”, afirmou. O ministro citou como exemplo a súmula editada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o tribunal recursal da Lava Jato, que tornou obrigatória a execução provisória da pena. “Sagrou-se como um mantra”.
“Nós tínhamos um encontro marcado com as prisões alongadas”, afirmou Gilmar Mendes, ao citar em seu voto decisões da Operação Lava Jato.
“De forma cristalina, afirmo que o fator fundamental a definir essa minha mudança de orientação foi o próprio desvirtuamento que as instâncias ordinárias passaram a perpetrar em relação à decisão do STF em 2016”, afirmou o ministro, que chegou a defender as prisões em segunda instância, mas mudou de posição em 2018, para permitir a execução da pena após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Gilmar Mendes argumentou que inúmeras decisões de segunda instância são revistas após o julgamento de recursos pelas instâncias superiores e que, se o problema é a morosidade, não cabe reinterpretar a Constituição. “Temos que melhorar é o sistema de funcionamento, a distribuição, o atendimento”, disse.
O ministro afirmou ainda que o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva “contaminou” o debate. Nesse momento, o presidente Dias Toffoli tomou a palavra para afirmar que houve pedido da força-tarefa de Curitiba para que Lula vá para o regime semiaberto.
“Ou seja, pela própria força-tarefa de Curitiba, ele deveria estar fora do regime fechado. Já não é este Supremo Tribunal Federal que estará decidindo. É um pedido do Ministério Público”, disse Toffoli.
Celso de Mello
O ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, foi o quinto voto a favor de que a pena só comece a ser executada após julgados todos os recursos nos processos penais, empatando o julgamento.
Citando os casos do mensalão e de desvios na Petrobras, Celso de Mello afirmou que “nenhum cidadão poderá viver com dignidade numa sociedade política corrompida”, mas que a Constituição não pode se submeter às “circunstâncias”.
O ministro afirmou que há mais de 30 anos tem entendido que a execução provisória da pena fere a presunção de inocência, mesmo antes da existência desses casos.
“Tem sido constante e inalterada a minha posição neste STF em torno da presunção de inocência”, afirmou Celso de Mello.
Segundo o decano (ministro mais antigo do tribunal), as penas “dependem do trânsito em julgado da sentença que as aplicou, uma vez que o postulado constitucional do estado de inocência consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de comportar-se em relação ao suspeito, indiciado, ao denunciado e ao réu como se esses já houvessem sido condenados definitivamente pelo Poder Judiciário”.
Para ele, o Estado não pode agir “de modo abusivo”. De acordo com o ministro, a Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Poder Judiciário “estão rigidamente sujeitos aos estritos condicionamentos que a Constituição Federal e as leis desta República lhes impõem como limites inultrapassáveis”.
Celso de Mello afirmou que nenhum ministro, a par de sua posição sobre a execução da pena, “discorda ou é contrário à necessidade imperiosa de combater e reprimir com vigor, respeitada, no entanto, a garantia constitucional do devido processo legal”.
“O processo penal condenatório não constitui e não pode converter-se em instrumento de arbítrio do estado”, afirmou.
“O estado, ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu, faz do processo penal um instrumento destinado a inibir a opressão judicial e a neutralizar o abuso de poder eventualmente perpetrado por agentes estatais.”
Sobre a possibilidade de prescrição de crimes, o ministro afirmou que, se os recursos estão previstos em lei, devem ser usados. “Esse não é o problema do Poder Judiciário, não é problema da defesa dos acusados, esse é um problema da lei.”
Dias Toffoli
O presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, formou maioria para derrubar a possibilidade de execução provisória da pena. Para Toffoli, o condenado só pode ser preso após o trânsito em julgado, ou seja, após o julgamento de todos os recursos do réu.
Toffoli defendeu que apenas as decisões do júri devem ser imediatamente executadas, pois tratam de crimes dolosos contra a vida.
Toffoli argumentou que o trânsito em julgado foi uma escolha do Congresso ao estabelecer o que rege o artigo 283 do Código de Processo Penal.
O ministro explicou que, na redação original, o artigo previa possibilidade de prisão a qualquer dia e a qualquer hora. Em 2011, o artigo foi alterado, restringindo a hipótese de prisão apenas após o trânsito em julgado e de forma cautelar.
“Sempre votei no sentido da deferência ao parlamento”, disse o ministro. “Nesse texto, temos que o parlamento pediu a necessidade do trânsito em julgado. Não é um desejo do juiz, é de quem foi eleito pelo povo brasileiro”, afirmou.
Para Toffoli, “a opção legislativa expressa [sobre o trânsito em julgado] não se confunde com a cláusula pétrea da presunção de inocência, essa sim, imutável”. Em seu voto, o ministro afirmou que está analisando, nesse caso, apenas a compatibilidade do artigo com a Constituição.
“O Congresso Nacional pode dispor sobre o tema, em sentido diverso, desde que compatível com a presunção da inocência”.
“Se a vontade do legislador, a vontade do parlamento, da Câmara e do Senado foi externada nesse dispositivo por aquela lei, esta foi a vontade dos representantes do povo.”
O ministro citou o movimento que defendeu a Lei da Ficha Limpa, a partir das eleições de 2006, que culminou na sanção de norma em 2010, estabelecendo que em condenações criminais não seria necessário o trânsito em julgado para barrar candidaturas.
Toffoli afirmou que o Judiciário chegou a suspender a aplicação da norma por falta de regulamentação. “Vontade do legislador”, argumentou.
Toffoli afirmou que, das mais de 800 mil pessoas presas no país, 354.084 estão encarceradas sem sequer terem sido julgadas. Em execução provisória, estão 192.954, ou seja, a partir da primeira condenação. Já em execução definitiva, cumprem pena 294.090 pessoas. Os presos com condenação em segunda instância são 4.895.
Sobre alegações de haver impunidade nos tribunais superiores, o ministro afirmou que “cansou de repelir isso”. Citando o julgamento do mensalão, Toffoli afirmou que o julgamento foi conduzido sem “pirotecnia” e se chegou à condenação de vários parlamentares e empresários.
“Se há combate à impunidade, é em razão deste STF’, afirmou Toffoli. “Não é política de heróis ou de candidatos a heróis. Até porque as pessoas passam, as instituições ficam”, completou.
Dias Toffoli afirmou que o número de recursos nos tribunais superiores “não provoca caos” e que o tempo médio de tramitação é de oito meses. “Esta Corte dispõe de mecanismos para obstar o abuso de recorrer”, afirmou.
Para o ministro, o “caos” está na “epidemia de homicídios” ocorridos no país e nos milhares de processos à espera de decisão do Tribunal do Júri. “É uma impunidade do sistema de investigação e aqui não há dúvida, a vítima é o pobre. (…) Esses assassinos estão à solta, sequer se sabe quem são”.
Ministros que votaram no dia 24
Saiba os argumentos utilizados pelos ministros que votaram na sessão do último dia 24:
Em seu voto, a ministra Rosa Weber se manifestou contra a possibilidade de prisão de condenados em segunda instância, afirmando que a presunção de inocência é “garantia fundamental” prevista na Constituição que não pode ser lida “pela metade”.
“Trata-se, na minha visão, de amarra insuscetível de ser desconsiderada pelo intérprete, diante da regra expressa veiculada pelo constituinte ao fixar o trânsito em julgado como termo final da presunção de inocência. No momento em que passa a ser possível impor aos acusados os efeitos da atribuição da culpa, não é dado ao intérprete ler o preceito constitucional pela metade, ignorando a regra”, afirmou Rosa Weber.
A ministra defendeu que o Estado deve observar as garantias asseguradas pelo próprio Estado. “Goste eu pessoalmente ou não, esta é a escolha politico-civilizatória estabelecida pelo Constituinte. Não reconhecê-la, com a devida vênia, é reescrevê-la para que espelhe o que gostaríamos que dissesse”, declarou.
Segundo a ministra, “em uma época na qual sobeja a desconfiança do povo em relação a seus representantes e o descrédito da atividade política” não é difícil, afirmou Rosa Weber, “ficar tentado a uma interpretação do texto constitucional que subtraia garantias e proteções”.
“Vale lembrar que história universal é farta de exemplos de que a erosão das instituições garantidoras da existência dos regimes democráticos, quando ocorre, lenta e gradual, normalmente tem origem na melhor das intenções: moralidade pública, eficiência do estado, combate à corrupção e à impunidade”, afirmou a ministra.
Rosa Weber afirmou que aplicou o entendimento tomado em 2016 pela maioria dos ministros em 66 decisões individuais, mas sempre salientando que daria seu voto no momento apropriado, o do julgamento das ações declaratórias. “Minha leitura constitucional sempre foi e continua a ser exatamente a mesma”, afirmou.
A ministra disse que a jurisprudência “comporta revisita, a sociedade avança, o direito a segue”, mas defendeu “cuidado com as maiorias ocasionais”.
Rosa Weber também comentou julgamento de 2016, do qual não participou, no qual o plenário virtual da Corte decidiu manter válida a possibilidade de prisão em segunda instância.
“Minha postura frente ao estado da arte naquele momento foi a de acatar o entendimento sedimentado pelo plenário, vale dizer, a de decidir em conformidade com a jurisprudência do STF, em atenção ao dever de equidade e em respeito ao princípio da colegialidade”, afirmou.
Luiz Fux
O ministro Luiz Fux deu o quarto voto a favor de permitir prisões de condenados em segunda instância.
Em seu voto, o ministro Luiz Fux criticou uma mudança de jurisprudência atual da Corte neste momento.
“A mudança de precedente não pode se fazer sem uma motivação profunda. Nós estamos aqui desde 2016 dizendo: ‘essa regra é salutar, ela evita a impunidade’. E agora nós vamos mudar por quê? Qual a razão de se modificar a jurisprudência?”
Para Fux, a presunção de inocência “não tem nenhuma vinculação com a ideia de prisão”.
O ministro citou casos emblemáticos como o da menina Isabella Nardoni, do menor Champinha e do ex-jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, que matou a namorada, afirmando que “perpassam pela lógica razoável de aguardar o trânsito em julgado para iniciar a execução”. “Matou pelas costas, confessou crime e só foi preso 11 anos depois.”
“O direito não pode viver apartado da realidade”, argumentou o ministro. “Isso é justiça? Será que é essa a Justiça que se espera de um tribunal? Vamos contemplar e só depois iniciar a execução de pena?”
Para o ministro, esgotadas as instâncias ordinárias, a primeira e segunda instância, “tem-se considerável força de que o réu é culpado”.
“O que a Constituição quer dizer é: até o trânsito em julgado, o réu tem condições de provar sua inocência. À medida em que o processo vai tramitando, essa presunção de inocência vai sendo mitigada. Há uma gradação”, defendeu.
Segundo Luiz Fux, os tribunais superiores não admitem reexame de fatos e provas. “Esse homem vai ingressar no Supremo Tribunal Federal inocente, com presunção de inocência?”.
Ricardo Lewandowski
O ministro Ricardo Lewandowski acompanhou o relator, ministro Marco Aurélio Mello, e a ministra Rosa Weber, contra a prisão após condenação em segunda instância.
Lewandowski disse que as mudanças na Constituição não poderão tornar vulneráveis as garantias previstas na Carta.
Citando cláusulas pétreas da Constituição, Lewandowski afirmou que entre estas cláusulas está a presunção de inocência, a “salvaguarda do cidadão”.
“Salta aos olhos que, em tal sistema, ao qual de resto convive com a existência de 800 mil presos encarcerados em condições subumanas, com 40% de prisões provisórias, em um estado de coisas inconstitucional, multiplica-se a possibilidade e cometimento de erros judiciais de magistrados de primeira e segunda instâncias. Daí a relevância da presunção de inocência”, defendeu.
“A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal consolidou-se, salvo por um breve lapso de tempo, no sentido de que ofende a presunção da inocência a execução provisória da pena, ressalvada a hipótese da prisão cautelar”, afirmou.
Segundo Lewandowski, a Constituição não é uma “mera folha de papel que pode ser rasgada sempre que contraria as forças políticas do momento”.
“A única saída legítima para qualquer crise em um regime que se pretenda democrático consiste justamente no incondicional respeito às normas constitucionais. Não se pode fazer política criminal contra o que dispõe a Constituição, mas sim, com amparo nela”, declarou.
Ministros que votaram no dia 23
Saiba os argumentos utilizados pelos ministros que votaram na sessão do último dia 23:
No voto, Marco Aurélio Mello afirmou que sua visão do tema é desde sempre conhecida. “Desde sempre implemento a resistência democrática e republicana na matéria, incontáveis habeas corpus voltados a preservar a liberdade de ir e vir do cidadão”, afirmou.
Mello afirmou que observará o pronunciamento da Corte, mesmo que seja contrário à sua posição, porque será vinculante (valerá para todos os casos na Justiça). Mas defendeu que “a culpa surge após alcançada a preclusão maior”.
Ainda segundo o relator, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
“A literalidade do preceito não deixa margem a dúvidas: a culpa é pressuposto da sanção, e a constatação ocorre apenas com a preclusão maior”, afirmou. “O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas.”
Para Mello, a Constituição de 1988 “consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória”. “A regra é apurar para (…) prender, em execução da pena, que não admite a forma provisória.”
O relator argumentou que uma pessoa que tem recursos pendentes ainda pode ser absolvida. E se ela for presa antes, ninguém poderá devolver a ela o tempo da liberdade perdida. “A liberdade será devolvida ao cidadão? Àquele que surge como inocente? A resposta é negativa.”
Alexandre de Moraes divergiu do relator e defendeu a manutenção do entendimento que permite prisões após a condenações em segunda instância.
O ministro disse que “ignorar o juízo de mérito das duas instâncias é enfraquecer o Poder Judiciário, as instâncias ordinárias [primeira e segunda instância]”. “A presunção de inocência não é desrespeitada com a prisão após a decisão condenatória de segundo grau”, afirmou.
“O Brasil prende muito e prende mal, porque nós temos: um terço somente de presos com violência ou grave ameaça, um terço, tráfico de drogas, e o outro terço, presos por crimes sem violência ou grave ameaça, principalmente patrimoniais”, disse. “Nós somos responsáveis por entregar ao crime organizado, soldados”, criticou o ministro.
Para o ministro, esse diagnóstico, no entanto, não tem relação com a possibilidade de prisão em segunda instancia. “Tem, sim, relação com manutenção em prisões em flagrante que são convertidas em preventivas”, argumentou.
Edson Fachin
O ministro Edson Fachin foi o segundo a votar a favor da prisão de condenados em segunda instância.
Segundo o ministro, o “acusado durante o processo deve gozar de todas as garantias de liberdade plenas”, mas “é inviável que toda e qualquer prisão só possa ter seu cumprimento iniciado quando o último recurso da última Corte tenha sido examinado”.
Para Fachin, os recursos aos tribunais superiores não têm o efeito de suspender a execução das penas.
“Não faria sentido exigir-se que a atividade persecutória do estado se estendesse também aos tribunais superiores. Entendo que há um limite”, afirmou.
O ministro Luís Roberto Barroso foi o terceiro a votar a favor da prisão de condenados por um órgão colegiado, argumentando que a prisão com o trânsito em julgado trouxe um sistema que possibilitou a “infindável apresentação de recursos protelatórios” por parte de advogados. “O Supremo em boa hora mudou essa jurisprudência”, afirmou.
Segundo o ministro, a demora na punição trouxe descrédito e “realidade de impunidade”. “Aqui nós decidimos a primeira, a segunda, depois a terceira, estamos decidindo a quarta”, criticou.
Barroso apresentou números sobre o sistema penitenciário para defender que a possibilidade da execução da pena diminuiu o índice de encarceramento no Brasil e que o percentual de prisões provisórias caiu depois que o STF permitiu a prisão em segunda instância.
“Isso demonstra que a nova orientação não agravou o problema do encarceramento e pode indicar que os tribunais de apelação passaram a ser mais cauteloso e os juízes de primeira instancia passaram a decretar menos prisões provisórias”, disse.
Barroso argumentou ainda que “não foram os pobres que mobilizaram os mais brilhantes e caros advogados do país”. “Numa sociedade estratificada como a nossa, há uma clara divisão entre crimes de pobre e crimes de rico. Os crimes que mais geram ocupação de vaga no sistema são os crimes dos pobres”, completou.
Posicionamentos de AGU e PGR
Advocacia-Geral da União (AGU)
O advogado-geral da União, André Luiz de Almeida Mendonça, afirmou que o estado deve garantir direitos violados das vítimas. O ministro defendeu que os princípios da Constituição garantem o justo processo e, não à toa, a presunção da inocência e a prisão estão em momentos diferentes no texto constitucional.
“Interpretar a Constituição é concretizá-la. Porque ela tem que ser aplicada na vida em sociedade”, afirmou. “Toda a Europa trata nesse sentido, de separar presunção de inocência de prisão. Essa é a jurisprudência de direitos humanos.”
Mendonça disse ainda que o direito individual não é o direito do mais forte e não se dirige apenas ao estado. “Quem defende o direito individual das vítimas? Quem defende o direito de ir e vir das vítimas? O direito à vida das vítimas? O direito de ela sair do trabalho e ir com segurança em um transporte público? Saber que seu filho foi com segurança para a escola? Eu vi várias defesas de direitos individuais. Não vi defesa do direito das vítimas”, completou.
Procuradoria Geral da República (PGR)
O procurador-geral da República, Augusto Aras, argumentou que a prisão após a condenação por colegiado somente deixou de ser aplicada entre 2009 e 2016. E que somente os que têm mais recursos conseguem ter acesso às instâncias superiores.
Aras afirmou que, “em tempos de polarização”, é preciso uma solução que favoreça uma integração social e a unidade política. “Ao nos afastarmos de um eventual raciocínio maniqueísta, o réu tem algo necessariamente acrescido em sua condição após sua sentença condenatória”, disse.
Segundo o PGR, as instâncias extraordinárias, como o Superior Tribunal de Justiça, estão voltadas ao julgamento de teses e não de casos, “acessíveis apenas a alguns que dispõem de maiores recursos e mais bem situados pela fortuna que sua sorte lhes atribui”.
Antes, representantes de duas entidades apresentaram as duas últimas manifestações contrárias à prisão em segunda instância. Miguel Pereira Neto, do Instituto dos Advogados de São Paulo, disse que a presunção de inocência é garantia de todo cidadão e o Supremo não pode colocar isso em risco. “A garantia da presunção de inocência é garantia maior da pessoa humana”, disse.
O advogado Técio Lins e Silva, do Instituto dos Advogados do Brasil, disse que a prisão após o trânsito em julgado é regra prevista na Constituição. “Esta ação não interessa a meia dúzia de ricos, acabar com a Lava Jato, tornar impune a corrupção”, complementou.
Entenda o julgamento
O plenário analisa um tipo de ação cujo efeito é chamado “erga omnes”. Ou seja, a decisão valerá para todas as instâncias do Judiciário e será vinculante, de cumprimento obrigatório.
Os ministros julgam três ações declaratórias de constitucionalidade, apresentadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo PCdoB e pelo Patriota.
Quando o STF iniciou a análise sobre o tema, na semana passada, presidente do STF, Dias Toffoli, afirmou que as ações e o julgamento “não se referem a nenhuma situação particular”.
Em 2016, a Corte permitiu a prisão de condenados em segunda instância, alterando um entendimento que vinha sendo seguido desde 2009, segundo o qual só cabia prisão após o último recurso.
A Corte manteve esse entendimento por mais três vezes, mas a análise de mérito das ações permanece em aberto. Por isso, juízes e até ministros do STF têm decidido de forma divergente sobre essas prisões.
Argumentos
O sistema penal brasileiro é baseado no princípio chamado de duplo grau de jurisdição (duas instâncias julgadoras). Para que um réu seja condenado, é preciso que um juiz de primeira instância dê uma sentença e que a decisão seja confirmada por um colegiado, por exemplo, de desembargadores, como é o caso de um Tribunal de Justiça estadual.
A partir da condenação em segunda instância, o réu ainda pode recorrer em alguns às cortes superiores, ou seja, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal.
No STJ e no STF, contudo, provas e fatos não são reanalisados, somente questões de direito e de aplicação lei, como eventuais contestações constitucionais. É esse ponto que divide advogados, juristas e o próprio Supremo.
Aqueles que defendem a prisão após a segunda instância afirmam que, na prática, os tribunais superiores se transformaram em terceira e quarta instâncias da Justiça, com dezenas de recursos de réus.
Os críticos desse tipo de prisão entendem que a presunção da inocência é um direito constitucional, o que garante a todo cidadão dispor de todos os recursos possíveis para se defender, incluindo os cabíveis aos tribunais superiores. Até o último recurso, portanto, ninguém pode cumprir pena.
- 17 de fevereiro de 2016: plenário definiu em um caso específico que a pena poderia ser executada após a condenação na segunda instância e que o réu poderia recorrer, mas preso. A decisão inverteu o entendimento que vinha sendo aplicado pelo STF desde 2009, segundo o qual era preciso aguardar o julgamento de todos os recursos antes da prisão;
- 5 de outubro de 2016: STF julgou medidas cautelares apresentadas pelo PEN e pela OAB e decidiu confirmar a possibilidade de prisão após segunda instância;
- 11 de novembro de 2016: Supremo voltou a julgar o tema, no plenário virtual, e manteve a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância;
- 4 de abril de 2018: ao negar um habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Corte reafirmou a jurisprudência de que a prisão é possível após a condenação em segunda instância.