Estoque de banco de sangue em estado crítico no estado de São Paulo — Foto: Paulo Chiari/EPTV
Compartilhe!

Um jovem protocolou uma ação judicial nesta quarta-feira (24) contra o hemocentro do Hospital Oswaldo Cruz, na cidade de São Paulo, que recusou a doação de sangue que ele pretendia fazer. Os funcionários do banco de sangue alegaram que uma norma da Anvisa impedia a contribuição de homossexuais, apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em maio, que considerou a proibição inconstitucional.

Questionado pelo G1 nesta quinta-feira (25), o Instituto HOC de Hematologia, prestador de serviço terceirizado do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, informou que atualizou todos os procedimentos em conformidade com a decisão do Supremo no dia 12 de junho, quando o Ministério da Saúde emitiu o ofício aos gestores dos sistemas estaduais de sangue. Leia a nota mais abaixo.

No dia 11 de junho, após tomar conhecimento dos baixos níveis de sangue nos estoques de São Paulo em meio à pandemia do coronavírus, o estudante Natan Santiago, que cursa o último ano da graduação em Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi ao Instituto HOC, no bairro do Paraíso, Zona Sul.

“Eu tinha vontade de doar já há um tempo, mas sabia da proibição. Naquele dia, no entanto, fui com a minha irmã com a maior tranquilidade porque sabia da decisão do STF”, contou Natan ao G1, relembrando o julgamento do dia 8 de maio, em que o Supremo derrubou restrições à doação de sangue por homens gays.

A irmã de Natan respondeu ao longo questionário e foi encaminhada para a coleta de sangue. Ele, contudo, foi impedido após responder positivamente à questão 47, sobre ter tido relação homossexual nos últimos 12 meses. A equipe do Instituto HOC justificou que a já invalidada Portaria 158/2016 da Anvisa impossibilitava a doação de sangue por homens homossexuais e bissexuais.

“Fiquei totalmente constrangido, pois não esperava o impedimento depois da decisão do Supremo. E seguiram-se 30 ou 40 minutos em uma discussão para que autorizassem, ou ao menos cedessem um comprovante de que eu estive ali e fui impedido por este motivo”, disse o estudante.

“Procurei meus colegas da GV e concluímos por esta ação, que tem dois recortes: a minha impossibilidade de doar e também a reparação dos danos morais pelo constrangimento e humilhação. Felizmente tenho o suporte do Centro de Assistência Jurídica Gratuita Saracura (CAJU), da Escola de Direito, pois é um processo custoso. Desse modo sinto que é uma obrigação social que tenho em expor a situação e colocar em prática a decisão tomada pelo STF. Isso não pode ser um critério. É um absurdo que seja”, continuou Natan Santiago, que protocolou a ação na 20ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

O professor da FGV, Dimitri Dimoulis, phD em Direito pela Universidade Saarland, explicou que as restrições no Brasil estavam previstas apenas em normas do Executivo – Anvisa e Ministério da Saúde, e como a Constituição Federal diz em seu artigo 102 que todas as decisões do STF têm efeito vinculante para o Poder Executivo, desobedecer gera responsabilidade, podendo, a depender do caso, ser até crime de desacato.

“A justificativa das normas era de que homens homossexuais tinham risco muito maior de se contagiar de doença sexualmente transmissível, em particular o HIV. É uma justificativa apenas preconceituosa, pois não importa se alguém faz sexo com homens ou mulheres, e sim se ele se protege, como ele escolhe parceiros, qual a frequência de exposição a práticas arriscadas, etc.”, esclareceu.

O que diz o STF

Contrariando um pedido da Advocacia-Geral da União (AGU), a maioria dos ministros decidiu que normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que limitavam a doação de sangue por homens gays são inconstitucionais.

O entendimento do STF foi no sentido de que os dispositivos ofendem a igualdade e a dignidade humana, afrontando a Constituição Federal. Na ocasião, o ministro relator da ação, Edson Fachin, acompanhado dos votos dos ministros Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes, disse que os dispositivos do Executivo:

  • ofendem a dignidade da pessoa humana, pois impedem as pessoas de serem como são;
  • insultam os direitos da personalidade à luz da Constituição da República?;
  • ?aviltam? o direito fundamental à igualdade ao impedir as pessoas destinatárias da norma de serem tratadas como iguais em relação aos demais cidadãos;
  • fazem a República Federativa do Brasil ?derribar o que ela deveria construir – uma sociedade livre e solidária;
  • induzem o Estado a empatar o que deveria promover – o bem de todos sem preconceitos de sexo e quaisquer outras formas de discriminação;
  • afrontam a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, os quais, em razão do art. 5o, da Constituição, por serem tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, possuem natureza materialmente constitucional.

Como o mérito da ação foi julgado pelo STF no dia 8 de maio de 2020, a portaria 158 não era mais vigente no momento em que Natan tentou doar sangue. A decisão passou a valer a partir do dia 22 de maio, data da publicação da ata de julgamento.

O pedido de indenização por danos morais se baseia no fato de que o critério da orientação sexual usado para aceitar ou negar doações causou constrangimento a Natan. Os advogados do CAJU-FGV relembram que o dano moral por homofobia foi ?reconhecido como crime pelo STF em 2019.

“A discriminação praticada pelo instituto violou o dever jurídico de tratar Natan com igual respeito e consideração, independentemente de sua orientação sexual, e, ao fazê-lo, também afrontou o dever de tratá-lo como pessoa digna, atingindo uma esfera fundamental de sua existência que é a do afeto e da sexualidade, sem a qual não é possível se realizar, conviver e, às vezes, nem mesmo sobreviver”, argumentaram os advogados na ação.

O que diz o Instituto HOC

O Instituto HOC de Hematologia, prestador de serviço terceirizado do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, informa que já atualizou todos os procedimentos relativos à doação de sangue por doadores homossexuais do sexo masculino, de acordo com recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

As novas regras foram adotadas no dia 12.06, data em que o Ministério da Saúde emitiu o Ofício Circular N°39, aos gestores dos sistemas estaduais de sangue, estabelecendo as novas diretrizes para o procedimento.

Até esta data, os critérios de aptidão para doadores obedeciam às regras estabelecidas no artigo 64, IV da Portaria Nº 158/2016 do Ministério da Saúde.

G1 SP

Deixe seu comentário