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Dezembro chegando. Black Friday bate à porta, convocando a todos para anteciparem os gastos de seus décimos terceiros salários. Esse ano, a efeméride comercial se antecipou em oferecer TVs a preços módicos e parcelamentos especiais à geral ávida por acompanhar as peladas da Copa. Utilizei a palavra “ávido” por força de expressão, mas o certo é que a Copa fora de época não anda, até aqui, atraindo muita gente.

Não anda a ganhar as adesões enfurecidas vistas em outros tempos. Curiosamente não é difícil encontrar, entre os copeiros não-convencionais, alguém que não saiba de que ela está acontecendo ou que só toma conhecimento quando surpreendido pela mudança brusca na grade de programação das emissoras.

Penso que a copa realizada num período pós-pandemia e de incertezas quanto ao fim de tão terrível ameaça, não foi tão bem anunciada. Em anos normais, sem intercorrências ameaçadoras, o terreno que antecipa o torneio intercontinental é bem pavimentado. A mídia global gasta todo seu tempo e poder para amolecer sensibilidades e gerar expectativas.

Todo aparato midiático vende, sem reservas, a ideia de que a competição une os mundos dispersos e suspende, durante cerca de um mês, as diferenças, reduzindo até a letalidade dos conflitos. Celebram assim uma espécie de “animação suspensa” das atividades belicosas do homem e, por dentro de cada nação participante, o exacerbamento dos sentimentos pátrios. Este ano corre o risco de passarmos o natal campeões do mundo (ou não), mas ainda com fantasmas clamando por exorcismos.

Reza a lenda que a presença de Pelé em uma partida de futebol foi capaz de suspender um conflito bélico. A FIFA e suas afiliadas parecem trabalhar guiadas pelo conteúdo simbólico desse relato para “vender” a Copa. Quem não pode ir ao palco/país sede ver o crime ao vivo, participa do festim à distância. Basta comprar uma TV de última geração, com recursos ilimitados da tecnologia mais moderna (num é, Alexa?) e, de preferência, com uma tela de dimensões bem mais generosas que aquela que virou entulho tecnológico.

Como vivemos tempos de sinais milenaristas, a Copa curiosamente (e de forma não intencional!) entrou no clima, começando com a escolha do país sede e do período para sua realização. Falar em clima, a copa só acontece nesse período por conta do inverno de lá. Sempre terei a impressão de que o país desértico é uma antecâmara de um vulcão ativo. Ademais, o Qatar consegue preservar e conservar quase todos os preconceitos que o mundo, quase unanimemente, luta para combater.

Mundo a fora, observa-se a eclosão (um surto, em verdade), cavalgaduras afora, de movimentos reacionários, a maioria de  inclinações  totalitárias e neofascistas. Por aqui, terra brasílis, alguns loucos descontentes ainda insistem no sequestro dos símbolos de um país, por meio, claro, da confusão plantada em artigos de jornal. “O povo brasileiro está nas ruas – e não é pela Copa do Mundo”, apregoava um artigo recente de uma proto celebridade do esporte e da política ai. A apropriação do termo povo, um artifício generalizante: de que povo falava aquela voz? Essa meia dúzia de abduzidos que ora ocupa a frente dos quartéis?

O esporte de massas, assim  como a política, quero crer que a criatura saiba, tem princípio alienante congênere. Alienação manipulada politicamente, bem como a atração simbólico patriótica do esporte atuam da mesma forma na mente. Se mal controladas, ambas levam qualquer ente à beira do fanatismo. A depender da dose, este acaba privando a vítima de todo o senso de realidade da apreensão imediata do mundo.

Contudo, todo ser humano tem direito a segundos de embriaguez simbólica, do êxtase, dessa orgásmica liberação desusada dos sentidos. Deveria estar escrito em alguma Declaração Universal dos Direitos do Cidadão, exclusivamente para quem tem ciência da brevidade da vida. “Todo ser humano – ou coletivo de homo sapiens – tem direito à catarse, à instantes de “alegria fugaz” e de “empolgante epidemia”, retomando as tiradas poéticas de um Chico brasileiro Buarque de Holanda, orgulho nacional.

Um adendo porém é necessário: “exclua-se os que padecem de martírio duradouros e inconsequentes, feito criança birrenta que não aceita o contraditório. A frustração pela não aquisição de um brinquedo de sua preferência ou cores. Esses podem vegetar pela vida. Ressalte-se porém que, naturalmente, crianças crescem e abandonam o hábito; idiotas em geral não tem direito garantido à mínima evolução; tende a se tornar sua torrente perene de lágrimas de crocodilo, pois nem mesmo sabem por em palavras objetivas o que os desagrada tanto e se desfazem em ondas de histeria. Nem ao menos sabem, rigorosamente, o que é ser patriota. e praticam, a céu aberto, um patriotismo excludente, perseguidor, anti-harmônico.  Digo, não cheira a patriotismo; é antes, patriotice, patri-idiotice, patri-otarice.

Sinceramente, prefiro o torpor patriótico da copa. É bem mais simpatico. Mesmo sendo os jogadores do esporte bretão dados a escolhas políticas exóticas e não estarem nem aí para os problemas sociais do país. Exerço meu quinhão de alienação, pessoal e coletivamente, até com algum gosto, ponho meu molho e dou sabor a ele. Parece-me uma alegria mais sincera e bem mais lúdica, uma espécie de ressaca da qual podemos acordar mais leves e sem muitos danos na vida prática, ou melhor, para o prosseguimento minimamente exitoso dela. Ou, mais ainda, para a saúde mental necessária pro enfrentamento dos dias que virão.

A embriaguez política instada por desejos impróprios – como pedir abertamente a ditadura – e advogar o atraso civilizatório macula o presente e danifica o futuro. Além de tender a deixar sequelas crônicas nos afetados, sobretudo para os ressentidos e “utopistas do nada a ver”.

Voltemos à Copa. Se ela não conseguiu empolgar até aqui (escrevo no dia de estreia da seleção) talvez seja porque atravessamos tempos sombrios, com a profusão de mentalidades confusas, equivocadas e manipulações maquiavélicas à espreita. Tomara então que a copa seja a liquidação de um tempo e não do mundo, do espírito democrático e dos segundos de desatenção alienante e lúdica, tão salutar a continuidade dos dias prevaleça. Quanto às patriotices (ou patriopatetices) reais ou imaginárias, sazonais ou elegantemente permanentes, a gente discute depois…à luz da psico psiquiatria.

Essa, quero crer, não será em definitivo a copa do fim do mundo, do após-calipso. Ser fora de época e quebrar a tradição junina já tá de bom tamanho. E, mesmo assim, é muito superior aos protestos fora de época e de propósito. Estes últimos totalmente desproporcionais em relação à personalidade viperina que atraiu o culto.

Por Edson de França

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