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Desconfio haver gente que assistiu ao filme “Diamantes de Sangue” (Blood Diamond, EUA, 2006, dirigido por Edward Zwick), estrelado por Leonardo di Caprio, e não entendeu bem como se constitui o mercado das “jóias” eternas. Muito menos que aquela “logística” retratada na película se repete mundo afora, seja na extração dos minérios, seja em outros empreendimentos humanos. O homem é o lobo do homem.

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O caso recente, noticiado pela imprensa, da descoberta de “trabalho semi-escravo” nos vinhedos sul-rio-grandenses é a ponta de um imenso iceberg. Levantou, contanto, a constatação de que, cá por terra brasilis, a desvalorização do trabalho de base, aquele comumente chamado “braçal” que arranca suor do rosto, sustança do corpo e pele do lombo, além de plantar desengano e desesperança, campeia solto, sem rédeas.

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Um fio puxa outro, outro e mais uns. Leio que, mesmo sucateada, a vigilância trabalhista no país conseguiu detectar mais de 250 violações desse tipo. A maioria, arrisco afirmar, oriunda do “mundo rural”, sobretudo daquele que produz itens do cardápio “trés chic” que vai ornamentar a mesa dos ricos deste país.

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A mentalidade escravista no Brasil é denunciada há tempos pela academia. Figura, ao lado do machismo e do racismo estrutural do nosso quadro de mazelas. O mundo acadêmico, porém, num país que desvaloriza a ciência e contenta-se com o opinismo babaca dos coaches e do senso comum dos ignorantes (e não dos matutos sábios). Se recusa, por pura incompreensão, a por “pontos nos is” e “dedos na ferida”. As verdades, mesmo que indiciais, causam mal estar, incompreensão e o apelo a  justificativas fajutas.

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De passagem, só pra constar,  uma das primeiras aulas de uma disciplina que não me recordo agora, o professor, oriundo de área rural canavieira do estado, ao ser interrogado sobre o regime de trabalho e remuneração na área, declarou simplesmente ser “por cara”. Fala que equivaleria a afirmar: “cara de valente e brigão ganha mais. Cara de besta, nem pro pão”. Apontou-me como exemplo. Eu, mirrado à época e com essa cara de leso que ainda “hoje trago e tenho”, de acordo com ele, estaria entre os que não receberiam nada. Subtendendo-se que não importaria o esforço dispendido, as horas aplicadas e o volume de produção. Tirei essa como exemplo da estrutura produtiva de nossos campos. Lembro desse episódio cada vez que adoço, hoje cada vez menos, o meu café.

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Estrutura produtiva, bem como as contradições no sistema capitalista, é conteúdo da sociologia. Esta, por sua vez, vem a ser essa ciência que desafia o lugar comum, a visão (ou versão) adocicada da realidade. Tira o brilho inebriante e sedutor e busca mostrar a opacidade dos processos que gestam as relações indivíduo/sociedade. Expõe o esqueleto no armário, disseca os métodos de exploração, as contradições do modelo hegemônico, a prática contumaz do desrespeito aos direitos e a desumanidade grassante. São missão, objeto e produto final da disciplina. Penso que por isso poucos a entendem e exércitos a combatem. Ela não interessa ao poder que é sempre varonil, vitorioso, símbolo da grandeza humana, é consensual e atrativa. A leitura do social tem o poder de tornar desagradável até uma taça de vinho nacional. O mundo prefere a economia e a administração que, por seu turno, só focam na maximização dos lucros e ganhos.

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A agroindústria nacional é pujante, um dos orgulhos pátrios, um símbolo de nossa capacidade produtiva. Um poder. Porém, para além do ufanismo, é preciso dissecar suas entranhas, autópsia-la. E não é uma demanda de hoje. Afinal está impregnada na conduta de nossos barões do agribusiness, herdeiros em sua maioria, a mentalidade mais retrógrada eivada de patriarcalismo, dos valores oligárquicos, do latifúndio, da exploração do trabalho e, claro, dos vícios da pomposidade do baronato.

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Alguns dos CEO’s (vou usar aqui essa expressão que só entendi o significado dia desses, parcialmente) do segmento certamente são laureados por seus êxitos, elogiados por suas capacidades empreendedoras, aparecem em traje de gala nos evento da hight e figuram em capas de revista do mundo corporativo. O mundo, afinal, sempre idolatra os escroques.

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Todo dinheiro tem seu preço, aponta a sabedoria do mundo. Toda produção que gera aquele ganho finca suas bases no trabalho humano, nas técnicas e ferramentas empregadas e é lastreado pelas relações (ou equações) entre esses elementos. Pudéssemos ter ciência de como se dá cada produção – desde o tipo de material utilizado, manipulação e qualidade de vida dos trabalhadores – muitas empresas e produtos mofariam nas prateleiras dos hipermercados.

Em tempo: o terroir do título, caso não esteja acostumado ao vocabulário do vinho, refere-se às características naturais da região onde a uva é produzida, o que confere ao produto final características únicas, exclusivas e inimitáveis.

Por Edson de França

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