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Dia desses ouvi num desses fragmentos de discurso viralizados via redes sociais, um breve comentário sobre o cigarro e o hábito que impregnou a sociedade em virtude do desenvolvimento da indústria do tabaco. Se o hábito de fumar é ancestral e antropologicamente explicado, o cigarro industrializado é sinônimo da sociedade moderna, da pujança da indústria e da massificação do consumo de itens e adoção de manias “socialmente” aceitas.

Crescemos – digo eu e os velhotes de minha geração – sob a intensa propaganda da indústria tabagista. Cada peça publicitária era um verdadeiro convite à adoção do vício às suas rotinas pessoais. Associando o hábito a um modo de vida específico – do glamouroso, bon vivant e sexy ao aventureiro das terras de Marlboro -, a publicidade, assim como o cinema, induziu milhões a adquirir (ou ambicionar) aquele modus vivendi apenas com algumas tragadas.

Era tanta bituca – ou piola, como queiram – e embalagem espalhada pelas ruas que nós, meninos, além de provarem dos sobejos dos adultos, ainda usávamos as carteiras vazias como um dinheiro paralelo em nossas brincadeiras. O câmbio seguia, claro, a valoração do cigarro; quanto mais chic, mais refinado, mais valor à cédula era auferido. Caso fosse realizado um balanço do lixo produzido naquela época, creio que grande parte seria constituída de restos da indústria do tabaco. Os amigos de pulmões mais fortes, que sucumbiram ao canto da sereia fumígena e incorporaram o hábito as suas rotinas, costumavam afirmar, garbosos, que fumavam apenas “por esporte”. Eita, esportezinho carregado. Há pulmões e fôlego para prática-lo.

Pois bem, mas voltemos a nossa historinha inicial. Diz o autor (do qual não lembro o nome), que nos primórdios da popularização do cigarro industrializado, ele ocupava indiscriminadamente todos os ambientes. A portabilidade – e, claro, a volatilidade – do objeto venenoso permitia, por exemplo, que durante os voos o viciado pudesse sacar seu cigarrinho e pitar tranquilamente lançando fumaça tóxica em todas as direções e ocupando os pulmões alheios. Até os anos 80, lembro como era difícil para mim, asmatico, andar de ônibus urbanos. Imagine-se, então, restaurantes e bares cheios de fumantes. Como os sem noção prevalecem sobre o bom senso, imagino que até em hospitais deve ter proliferado um beligerante e inconsequente exército tabagista.

Não sei em que período a ciência começou a estudar os efeitos maléficos do tabaco para a saúde humana. Sobretudo no que tange a ocorrência de doenças incuráveis e, consequente, redução da expectativa de vida. Penso, no entanto, que a voz da ciência é inócua diante das artimanhas da propaganda (sempre bem financiada e indiferente aos malefícios dos produtos a que ajuda a massificar, ou seja, eticamente irresponsável com a sociedade). Imagine-se, então, o tempo que se levou e a batalha insana que a “voz da razão” teve que dispor para lutar contra esses gigantes. Era de candidatar, deliberadamente e por idealismo, a fogueira da inquisição do status quo.

Por outro lado não deve ter sido menor a guerra para entrar na cabeça do consumidor e dissuadi-lo da necessidade do cigarrinho diário. O orgulhoso cidadão com certeza não teria ouvidos praqueles apelos, afinal fumar era in, era estar na moda, era quase um passaporte para o grand monde e para o usufruto da haute couture. Era, também, não podemos negar, a companhia silenciosa para almas atormentadas e solitárias, era o cais salvador, o veículo de catarse, o remedinho para a ansiedade. Mas, fosse qual fosse o objetivo, fazia e faz mal.

Queimei uma crônica inteirinha falando de cigarros para concluir que a razão, a tal água mole em pedra dura, aos poucos provoca mudanças. A abnegação dos “chatos” antitabagistas surtiu algum efeito. Vieram as leis antitabaco, a proibição de consumo em certos ambientes, sobretudo os fechados, as campanhas de saúde pública. Uma história a se contar, para evitar que os nascidos na contemporaneidade não pensem erroneamente que o mundo sempre respirou esse ar. E, também, que os alertas quanto ao uso do queridinho da atualidade, o cigarro eletrônico, não devem ser desconsiderados e sendo atribuídos a vigilantes do pulmão alheio.

Um dos maiores entraves à mudança, com certeza, foram e serão sempre  os renitentes “sábios”, os inadequados sociais. Uma parcela resistente da população que é capaz de elaborar qualquer argumento ou recorrer a exemplos esdrúxulos para afirmar as próprias certezas. Mesmo diante dos fatos mais gritantes, da realidade que se impõe, eles se mantêm firmes em seus territórios de dúvida e especulação suicida. Entre esses estão as pessoas que insistem em fumar em locais proibidos afrontando a geral, aqueles que fazem questão de ouvir som nos urbanos, desrespeitando o gosto estético geral ou aquelas senhoras que se tornaram parlamentares no vácuo da lei que tenta quebrar a hegemonia masculina e atentam contra a própria cota.

Assim como aconteceu com a “cultura” do cigarro, outros cenários também foram modificados através dos tempos graças a luta ferrenha de alguns idealistas, abnegados e sensíveis a determinadas problemáticas. Enfrentando a indústria, a fábrica de propagandas, a ignorância e insensibilidade da massa. Só pra constar, o estupro já foi celebrado e considerado um direito do macho, hoje é crime e recebe o repúdio da sociedade; a palmatória já foi instrumento pedagógico; o homem já foi praticamente o senhor – cabeça, tronco, genitália e vontades – da mulher e por aí vai.

Hoje quando assisto mulheres, por exemplo, negando os avanços do feminismo, negros atacando a política de cotas partidárias e velhuscas conservadoras defendendo a bandeira de volta do princesismo de conto de fadas, só detecto ignorância histórica. Gente que classifico como inadequáveis sociais, ou seja, indivíduos que buscam construir um  mundo paralelo, repleto de reminiscências arcaicas.  Não se pode, em nome da santa ignorância ou de alguma ideia atravessada, querer recompor ambientes do passado. Os salões infestados por fumaça de cigarros, por exemplo. Se for pra reviver alguma coisa do passado, goiabada cascão na caixa já nos basta, né não?

Por Edson de França

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