“A gente sempre soube que isso ia acontecer, sempre soubemos que não ia ter leito e equipamento para todos, mas você ver uma pessoa morrer com falta de ar na sua frente é uma das piores coisas que alguém pode presenciar. É agoniante ver o olhar de desespero. A gente tentou fazer o possível para ele, mas sem o ventilador, não conseguimos mantê-lo”.
O relato é de uma médica que trabalha em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) do Grande Recife, portas de entrada para assistência na rede pública de saúde. Com a pandemia da Covid-19, as unidades têm chegado ao limite.
“Eu entendi que estamos colapsando quando nesse último fim de semana [25 e 26 de abril], num plantão noturno, recebemos um paciente em insuficiência respiratória aguda, com indicação imediata de tubo, mas não tínhamos respirador disponível – todos da unidade estavam sendo usados”, contou a profissional, que preferiu não se identificar.
O paciente, segundo ela, tinha histórico clínico sugestivo de Covid-19 e apresentava desconforto respiratório. Seis horas após ser admitido, o homem faleceu, segundo a médica. “Chorei a madrugada inteira”, relembrou.
As UPAs são o ponto inicial do caminho dos pacientes até os 1,1 mil leitos criados para o enfrentamento ao novo coronavírus em Pernambuco. Os profissionais de saúde que trabalham nesse serviço de atenção básica afirmam que as unidades não receberam reforços para o tratamento de pacientes com suspeita de Covid-19 e falam em colapso no sistema.
A médica contou, ainda, que um casal de pacientes idosos deu entrada em uma UPA ao longo da pandemia e o homem faleceu.
Eles não saíam de casa e, por isso, a família achava que não poderia ser Covid quando eles começaram a apresentar tosse e febre. O marido foi a óbito e a esposa foi para casa. Ambos eram Covid positivo”, disse.
“Não sabemos mais o que dizer para o familiar que fica na recepção da UPA, aguardando ansiosamente notícias do seu parente internado, sem poder ir lá e dar um abraço, um aperto de mão. Talvez seja isso que mais doa… Ver tantas pessoas vulneráveis e frágeis, sem saber se vão viver ou morrer, com tanto medo e sem poder receber um abraço. Sem poder ver um rosto familiar. Sem poder ver um sorriso”, disse a médica.
“Não tenho conseguido dar conta da ansiedade e do medo de chegar em um plantão e não saber quantos óbitos teremos, se vamos ter condições de tratar dignamente aquelas pessoas, quantas histórias vamos encontrar, quantas histórias ali vão acabar”.
A cada semana, os médicos contam que a situação tem piorado. “Antes de entrarmos em mitigação, recebíamos uma demanda grande de casos possivelmente positivos de Covid-19, mas não havia critérios para notificarmos. Isso foi um fator complicador, porque poderíamos estar notificando e diagnosticando”, contou.
Quando o estado confirmou os primeiros casos de transmissão comunitária, em março, o relato foi de desespero. A situação se agravou ao longo das semanas. “Em abril, começamos a receber os casos com maior gravidade. Pacientes gravíssimos com desfechos ruins em curto espaço de tempo. Independente da idade, independente de comorbidades. E a cada semana que passa, piora”, disse a profissional.
Diante do aumento da demanda, os insumos e a estrutura não têm sido suficientes. “Não temos as medicações necessárias para manejar esses pacientes, não temos profissionais para atender todos com o mínimo de dignidade. Em uma das UPAs que trabalho, temos mais de 110 atestados na equipe, entre técnicos, enfermeiros, médicos. É muita gente afastada. É muita gente doente. É muita gente com medo”, disse a profissional de saúde.
‘É literalmente uma fila para o oxigênio’
A falta de adequação das UPAs para enfrentar a pandemia é queixa unânime entre os profissionais de saúde dessas unidades.
“Esse serviço, extremamente essencial para a população, não recebeu nenhum tipo de estruturação para essa pandemia. Continuamos com a mesma quantidade de médicos, enfermeiros, técnicos e demais funcionários. Pacientes ainda sofrem Acidente Vascular Cerebral (AVC), ainda se acidentam, ainda levam tiro ou facada e [têm sintomas] de Covid-19”, contou uma segunda médica plantonista, que também atua em UPAs no Grande Recife.
A falta de equipamentos necessários para a falta de ar, o sintoma mais preocupante da Covid-19, é o gargalo mais evidente nas unidades.
“Cada plantão é um desespero. Cada dia chegam mais pacientes com Síndrome Respiratória Aguda Grave, precisando de suporte de oxigênio ou intubação e ventilação mecânica. Não temos fonte de oxigênio para todos. Ficamos com pacientes na sala de medicação esperando que outro seja transferido para ter direito à fonte. É literalmente uma fila para ter direito ao oxigênio”, relatou a profissional.
Descontrole total’
Quem também sente na pele os problemas são os pacientes e familiares que precisam de assistência médica na rede pública. Apresentando febre, tosse e falta de ar, o tio da tosadora Noeli Félix esteve na segunda (27), na terça (28) e na quarta (29), na UPA da Imbiribeira, na Zona Sul do Recife. Nos três dias, ele foi orientado a voltar para casa.
“Moramos em Candeias [em Jaboatão dos Guararapes], mas nos mandaram para lá porque a UPA de Barra de Jangada não tem mais vaga”, contou Noeli.
No Recife, a situação também é de superlotação, segundo a tosadora. “Se você visse como estava lá ontem [29], você não acreditaria. É muita gente. Pelo fluxo de ambulâncias que chegam, você vê que está um descontrole total. O clima está horrível. Por mais que se fale disso, as pessoas não têm noção de como as coisas estão”, relatou.
Após três dias buscando atendimento médico para o tio, Noeli afirmou que seu parente foi encaminhado para casa. “Tentamos usar o aplicativo Atende em Casa, mas não conseguimos. Lá dentro, meu tio disse que só recebeu soro e uma medicação para voltar para casa. Vamos ter que tirar dinheiro não sei de onde para buscar um hospital particular”, disse a tosadora.
Nesta quinta (30), a UPA da Imbiribeira recebeu a diarista Cleonice Maria da Silva e o marido dela, Tiago Silva, ambos de 34 anos. O esposo de Cleonice precisou ficar do lado de fora da unidade, aguardando em uma fila. O casal chegou às 9h e, por volta das 12h, Tiago ainda não havia sido atendido.
“Ele está sentindo dor de cabeça, diarreia e 39 de febre. O atendimento está péssimo. Está muito cheio, não tem médico. A gente vê a situação de tanta gente morrendo, enterrando como indigente, e às vezes eu não consigo dormir”, contou.
Profissionais afastados
Com 1.649 profissionais de saúdes que tiveram diagnóstico de Covid-19 até a quarta-feira (29), o governo do estado criou uma central de atendimento psicossocial que iniciou funcionamento nesta quinta (30). O Acolhe SES é uma central de teleatendimento para tratar profissionais da linha de frente e familiares de servidores doentes sobre conflitos emocionais e ansiedade.
O atendimento é gratuito, feito pelo número 0800 081 4100. As ligações podem ser feitas de segunda a sábado, das 7h às 19h.
Secretaria responde denúncias
Por meio de nota, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) informou que o atendimento nas UPAs funciona por meio do Acolhimento com Classificação de Risco, sistema criado para “garantir um atendimento mais rápido e resolutivo, priorizando os casos mais graves. Quem chega às UPAs é visto, inicialmente, por um profissional de enfermagem. As situações de alta complexidade, onde há risco à vida do paciente, são encaminhadas aos médicos de imediato”, diz o texto.
Ainda de acordo com a secretaria, “é normal o aparecimento das queixas, principalmente dos pacientes que possuem classificação verde ou azul (casos de baixo risco), que são encaminhados para unidades de saúde de menor complexidade, como postos de saúde e policlínicas”.
Diante do momento de pandemia, a SES informou que vem dialogando junto aos municípios para que as secretarias municipais desenvolvam as potencialidades de sua rede de atenção básica”. A Secretaria não deu resposta às denúncias dos profissionais de saúde sobre falta de equipamentos e de estrutura para atender os pacientes.
Em coletiva de imprensa transmitida pela internet, nesta quinta-feira, o secretário de Saúde, André Longo, informou que não há registros de pacientes que deixaram de ser atendidos devido à falta de profissionais e equipamentos.
“Há uma redução da procura da grande maioria dessas UPAs. Os médicos estão muito focados em atender os pacientes com Srag, porque há redução na procura em outras patologias. As unidades que tem traumaortopedia estão menos pressionadas e, obviamente, são respeitadas as especificidades de cada uma delas. A demanda de Srag quadruplicou, e, em alguns momentos tem superlotação, mas nao temos noticias de que houve falecimentos por falta de assistência. Os óbitos, mesmo os que acontecem dentro de unidades, estão sendo revisados por comitês. Não escondemos que há dificuldades, mas acreditamos muito na força dos profissionais, mas a estrutura é finita”, declarou.